sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A contradição da escravidão no Brasil

Três especialistas sobre o assunto debruçam-se sobre mais um dos anônimos africanos que desembarcou no país como escravo e aqui ganhou liberdade e uma certa mobilidade social. Seu nome: Alufá Rufino


Mercado de escravos no Rio de Janeiro, em meado de 1820
Rufino José Maria – africano que nasceu no reino de Oyó (atual Nigéria) – chegou ao Brasil como escravo, por volta de 1822, depois de ser aprisionado, ainda adolescente, por um grupo étnico rival na sua região natal. Sua história, que diz muito sobre a complexa sociedade brasileira do século 19, é tema do livro O Alufá Rufino – Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (c.1822-c.1853), dos historiadores e professores universitários João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus J.M. de Carvalho, lançado pela Companhia das Letras. Não é uma obra típica sobre a escravidão africana no Brasil. “É também isto, mas uma narrativa de história atlântica”, observam os autores no prefácio do livro. A vida de Rufino nos leva a uma viagem que começa em Oyó, reino africano que o viu nascer; Salvador, onde desembarcou como escravo; Porto Alegre, para onde foi levado, vendido e conseguiu comprar sua alforria; Rio de Janeiro, porto em que embarcou como marinheiro de navio negreiro; Luanda, principal entreposto do negócio negreiro de Angola e Serra Leoa (colônia inglesa que visitou em duas ocasiões e onde aperfeiçoou seu conhecimento da língua árabe; e finalmente para o Recife, cidade que escolheu para viver como adivinho, curandeiro e mestre muçulmano.


"RUFINO FOGE COM ENORME REGULARIDADE DE NOSSO CAMPO DE VISÃO PARA DAR LUGAR AO DRAMA COLOSSAL DA ESCRAVIDÃO NO MUNDO ATLÂNTICO"



O Alufá Rufino – Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (c.1822-c.1853), obra dos historiadores e professores universitários João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus J.M. de Carvalho, lançado pela Companhia das Letras
E como os historiadores conseguiram reconstituir a vida desse personagem tão fascinante que viveu entre mundos, entre mares e acabou virando uma espécie de guia espiritual da comunidade de negros muçulmanos em Recife, na segunda metade do século 19? Assim como outros negros alforriados no Brasil, Rufino José Maria foi discriminado, perseguido e acabou sendo preso por suas práticas religiosas. Por conta dessa prisão foi que os autores chegaram ao personagem principal, após terem acesso ao interrogatório que Rufino deu à polícia quando foi preso em Recife, em 1853. Outro documento que reconstitui parte da trajetória do africano foi uma matéria que saiu no jornal do Commercio, do Rio de Janeiro (edição de 25 de setembro de 1853). Esses dois documentos traziam apenas algumas passagens da vida de Rufino José Maria. “Como acontece geralmente nas biografias de gente do tope social de Rufino, informações diretas sobre ele nos escaparam o tempo quase todo”, esclarecem os historiadores. A pesquisa que resultou no livro levou quase uma década para ser concluída e foi realizada em mais de duas dezenas de arquivos em quatro países, de três continentes.

Como vem acontecendo nas pesquisas historiográficas das últimas décadas, João, Flávio e Marcus abordaram o que foi a história social do tráfico e da escravidão no Brasil por meio da microhistória. Como muitas lagunas na trajetória de Rufino, os historiadores foram atrás de documentos que tratassem dos personagens que se relacionaram com Rufino ou que abordassem as circunstâncias vivenciadas por ele e por aqueles que viveram na sua época (autoridades, proprietários, traficantes e parceiros).


NEGROS VERSUS NEGROS

Alberto da Costa e Silva – o mais importante africanista brasileiro vivo, autor do clássico A enxada e a lança – diz nos seus estudos que “um irmão africano jamais escravizava o outro”. A afirmação se refere aos africanos da mesma etnia, pois os de etnias distintas escravizavam uns aos outros nas guerras civis que travavam entre si. Quem vencia, escravizava o povo vencido. Muito do crescimento do contingente de escravos vendidos para países como Estados Unidos, Cuba e Brasil, no século 17 e 19, se deveu ao acirramento desses conflitos no seio africano.
Negros eram capturados nas aldeias e povoados por outros africanos e levados para serem comercializados junto aos traficantes que aportavam com os seus navios em cidades como Lagos, entreposto africano que despontava nessa época como o mais ativo do golfo de Benim. O adolescente Abuncare ou Abdul Karim – supostamente o nome muçulmano de Rufino – tinha por volta de 17 anos quando foi aprisionado e vendido para um dos navios negreiros que vinham para o Brasil. Chegou aqui no final de 1822, na Bahia. Seu desembarque no Brasil se deu em plena zona de conflito entre Brasil e Portugal. “Não deixa de ser irônico que o africano tivesse acabado de sair de um território conflagrado pela guerra, para desembarcar no meio do conflito luso-brasileiro em Salvador”, cita um dos autores.


DE MÃOS EM MÃOS, ATÉ A LIBERDADE

Na capital baiana, Rufino foi comprado por um boticário pardo de nome João Gomes da Silva e viveu em Salvador por alguns anos, até seguir viagem com um dos filhos de João para a província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Lá, foi vendido para outro senhor que, depois de falir, revendeu o escravo como parte da dívida. Rufino foi negociado numa hasta pública (leilão de escravos) e seu comprador se chamava José Maria Peçanha, chefe de polícia da província. Anos depois comprou sua carta de alforria e assumiu os dois primeiros nomes do seu senhor (José Maria). Do Rio Grande do Sul, seguiu alforriado para o Rio de Janeiro e lá viveu liberto por algum tempo, até embarcar num navio negreiro como cozinheiro (profissão que começou a exercer durante sua vinda ao Brasil).
Começava aí sua peregrinação como cozinheiro nos navios que traficavam escravos ilegais pelo Oceano Atlântico. Numa dessas viagens, a embarcação Emerlinda foi capturada pela marinha britânica, que levou o navio e sua tripulação para Serra Leoa. Foi nessa colônia inglesa que Rufino teve contato com uma comunidade iorubá, aprofundando seu conhecimento na língua árabe e na religião islâmica. Esse aprendizado o faria, anos mais tarde, um chefe religioso em Recife, um Alufá, fato que o levaria à prisão em 1853, como suspeito de participar de um levante escravo. Na época, Rufino declarou para as autoridades (isso consta no inquérito policial) que se chamava Rufino José Maria, solteiro, 45 anos de idade, filho de Ocochô e Bixoume, natural de Oió (Oyó) que exercia a profissão de cozinheiro. O que aconteceu com Rufino depois de ser solto não se sabe, tampouco como morreu, mas a necessidade de narrar sua história, segundo os historiadores, “serviu de guia para uma história bem maior do que caberia na sua experiência pessoal. Ele foge com enorme regularidade de nosso campo de visão para dar lugar ao drama colossal da escravidão no mundo atlântico no qual desempenhou seu pequeno, mas interessante, às vezes, nefasto, papel.”


PINHEIRO, Amilton. A contradição da escravidão no Brasil. RAÇA BRASIL. Disponível em: http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/157/artigo226183-2.asp. Acesso em: 18/11/2011.

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