sábado, 5 de novembro de 2011

Logo ali ali, depois do oceano...

As ondas que nos separam nada representam diante das que nos unem. Hoje, Angola e Brasil estão muito mais próximos do que se pode imaginar. Diariamente um grande número de angolanos assiste à programação de TVs brasileiras. Só os brasileiros pouco ou nada sabem a respeito desse país-irmão


Passear à noite pelas ruas de São Paulo com meus amigos Messias Constantino e Mario Paiva, ambos de Luanda, diretores da Associação de Jornalistas Económicos de Angola (AJECO), revelou as imagens que o Brasil está enviando mundo afora. "Muita gente de minha cidade jamais faria o que estamos fazendo - comentou Mário -, por causa de programas policiais e noticiários veiculados pelas TVs Record e Globo, que assistimos lá. Elas imaginam que, a qualquer momento, serão assaltadas ou vítimas de uma bala perdida." 

Também dirigente da Federação dos Jornalistas de Língua Portuguesa, Messias concorda com o colega e lamenta que seja essa a imagem brasileira veiculada em Angola: "O Brasil é um país encantador e temos inúmeras coisas em comum. É uma pena que essa comunicação não seja de mão dupla. Na programação das televisões aqui, em todas as minhas visitas, nunca vi uma única menção a Angola e à nossa cultura", diz. Todos estranham quando ele menciona alguns ritmos musicais angolanos, como semba - que teria influenciado a origem do nosso samba -, maringa, kabetula, kazukuta, caduque e rebita. E riem diante dos nomes de algumas danças populares, como o kuduro e a tarraxinha.

Assim como todo o continente africano, e, apesar da língua em comum, Angola é grande desconhecida dos brasileiros. Numa reunião de empresários angolanos que vivem em São Paulo, há alguns anos, um deles me alertou: "O senhor afirma que Angola é um país de negros? Pois está enganado. Angola é um país de todos."

A ANGOLA DO PASSADO

A origem do nome Angola deve-se ao mais próspero dos reinos que existiram naquela região, o de N'dongo, cujo rei ou rainha tinha o título N'gola. Durante décadas, o N'gola Kiluange manteve aliança com os estados vizinhos para resistir à invasão estrangeira. No início do século XVII, estava no poder a N'gola N'zinga M'bandi, filha de Kiluange, também chamada de Rainha Jinga (ou Ginga) - cuja fama chegou ao Brasil e hoje é cultuada principalmente nos estados do Maranhão e da Bahia. Política astuta, ela uniu o N'dongo a Matamba, e tornou-se N'gola dos dois reinos. Acordos quebrados, ela criou quilombos, aliou-se aos holandeses e aos jagas no combate a Portugal. Foram 40 anos de resistência. Em 1659, N'zinga assinou um tratado de paz com Portugal e reinou no N'dongo até morrer, em 1663, aos 80 anos. 

 
Pedro Lourenço quer ser presidente
do país
A Conferência de Berlim, de fevereiro de 1884 a fevereiro de 1885, reconheceu a posse de Angola e demais países lusófonos a Portugal. Na segunda metade do século 20, iniciaram-se confrontos promovidos pelos grupos rebeldes Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), criada por Jonas Savimbi, que guerreava no sul do país, e a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), de Holden Roberto.

O país conquistou sua independência em 1975, através de um acordo político que só foi possível após a derrubada do ditador português António de Oliveira Salazar. O acordo previa que os três grupos transformados em partidos políticos teriam representação no poder. Acordo quebrado, iniciou-se a guerra civil que vitimou cerca de 500 mil angolanos e só se encerrou com a morte de Savimbi, em 2002. Até o início do século 21, o país viveu em clima de guerra interna e com países vizinhos como a África do Sul.

Paralelamente, a Frente para a Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC), também realizava guerrilha separatista pela independência da província de Cabinda, de onde é extraído cerca de 70% do petróleo exportado de Angola. Esse conflito ainda dura, apesar de ter se abrandado nos últimos anos.

UM OLHAR BRASILEIRO

Muitos cidadãos brasileiros como Ivair Augusto Alves dos Santos, assessor especial e secretário executivo do Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD), viveram a atrocidade das guerras angolanas. Nos anos 70, ele foi contratado pela UNESCO para trabalhar em Angola. "Motivado pela oportunidade de viver três meses naquele país, acabei ficando por três anos. Angola estava em guerra com a África do Sul. A experiência de viver em um país em guerra marca qualquer ser humano, ainda mais um jovem negro brasileiro, com ideias e sonhos de viver em um país africano.

A guerra impõe hábitos, disciplina e altera o relacionamento entre as pessoas. A precariedade da infraestrutura da capital, Luanda, piorou muito, com a migração dos refugiados da guerra", conta. Por outro lado, Ivair impressionou-se com a hospitalidade e a amabilidade do povo angolano com relação aos brasileiros e belezas naturais do país. "Estive na região do antigo Reino do Congo, onde me deparei com uma arquitetura que me deixou a forte convicção de uma desenvolvida civilização africana pré-colonial. Quando me perguntam que países visitar na África, digo, com muita tranquilidade, para começar pela província angolana do Zaire. Para além dos atrativos da natureza, a história dos negros brasileiros passa por aquelas regiões."

Vera Lúcia Benedito: "Eles não esquecem"
Tantos anos de conflitos foram os responsáveis pela migração de uma quantidade incalculável de angolanos mundo afora, em especial para Portugal e Brasil. Muitos deram entrada nos países para os quais emigraram, alegando serem refugiados políticos. O presidente da Associação dos Angolanos em São Paulo, Pedro Francisco Joaquim Lourenço comenta que um bom número foi vítima de perseguição política por viver numa área controlada por um dos grupos oponentes. Só lhes restava abandonar o país. "De alguma forma, a guerra foi o principal motivo do fluxo de refugiados, mesmo os que partiram em busca de empregos. Os que abandonaram as áreas de conflito, mas não deixaram o país, deslocaram-se para Luanda, hoje com uma população na casa dos 6 milhões de habitantes." Estudante de Engenharia de Sistemas de Controle e Automação, na Unesp de Sorocaba, Pedro Lourenço explica que muitos membros das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (Fapla), receberam bolsas de estudo para se formar no Brasil e não retornaram a Angola. 

Atualmente, há comunidades angolanas em várias cidades, como Hortolândia, na Região Metropolitana de Campinas, Lins e na capital São Paulo, onde uma grande quantidade habita o bairro do Brás. "Há muitos ainda em situação ilegal, principalmente entre os deslocados que vieram após as eleições de 1992. Nossa associação quer regularizar a permanência deles no Consulado Geral de Angola, em São Paulo, e na Polícia Federal. Por isso, vamos pôr em prática um projeto que se constitui de um censo e outras iniciativas, que intitulamos de "Quantos Somos". Um número que pode ir de 700 mil a um milhão."

REESTRUTURAÇÃO SOCIAL

socióloga brasileira Vera Lúcia Benedito, doutora em Sociologia/Estudos Urbanos, pela Michigan State University (EUA), esteve em Luanda em 2008 e voltou, em agosto último, para participar de um seminário. Em ambas as viagens, impressionou-se muito. "Luanda já não é a mesma que visitei a primeira vez. A cidade está se transformando rapidamente. Trabalhos de infraestrutura continuam a todo vapor, apesar de dizerem que o ritmo de crescimento diminuiu um pouco. Mas é impressionante." Vera conta que os angolanos continuam bonitos, amáveis e sorridentes. "Tratam bem os brasileiros, já que fomos o primeiro país do mundo a reconhecer a sua independência, em 1975. Eles não esquecem."

 
Na recente viagem, a socióloga participou, como palestrante, de um seminário sobre a erradicação do analfabetismo, que atinge cerca de 58% da população. O evento ocorreu em Kuito, capital da província de Bié, segundo ela, uma das cidades mais castigadas pela guerra e que passa por um intenso processo de reconstrução. "Ainda é possível ver edifícios metralhados de cima abaixo", diz. Para Vera, da mesma forma com que se empenha na reconstrução do país, com a atividade intermitente de construtoras como as brasileiras Camargo Corrêa e Odebrecht, "o governo de Angola, manifesta grande interesse na reestruturação social que, necessariamente, passa pela educação."


JOVEM FUTURO PRESIDENTE

Pedro Lourenço se diz feliz pelo encantamento da socióloga Vera Benedito, mas destaca que os 16 milhões de habitantes de Angola vivem muitos outros dilemas. Apesar de produzir petróleo e diamantes, o país tem uma pequena produção agrícola de algodão, de sisal e alguns outros produtos, poucas indústrias e vive de importações. Não há uma lei rígida de importação, e a inflação é altíssima. "Grande parte da população está no mercado de trabalho informal. Apesar de nossa economia ser forte e pertencermos ao bloco econômico da Comunidade da África Meridional para o Desenvolvimento (SADC), nossa moeda, a kuanza é fraca. O dólar, que está despencando no mundo todo, vale hoje cerca de 90 kuanzas. Há, ainda, muitos outros problemas, entre eles, falta de vontade política e uma corrupção generalizada."

Apesar de estar apenas com 25 anos, Pedro Lourenço não tem dúvida com relação a seu futuro. A constituição angolana determina que o presidente do país precisa ter, no mínimo, 35 anos. Por isso, ele faz questão de afirmar que, dentro de 15 anos, será candidato à presidência de Angola. Quem sabe se me foi dada a honra de ser o primeiro jornalista brasileiro do século 21, a entrevistar um futuro presidente angolano?

 
FAUSTINO, Oswaldo. Logo ali ali, depois do oceano. BRASIL RAÇA. Disponível em: http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/159/artigo238855-2.asp. Acesso em: 05/11/2011.

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