sexta-feira, 9 de março de 2012

O negro e a ciência, uma questão de identidade e cidadania

A presença de uma visão eurocêntrica no ensino de ciências, contribuiu para afastar os afrodescendentes das carreiras científicas

Lázaro Cunha*
lazarocunha21@hotmail.com
Ao tratar da importância do conhecimento científico para a população negra brasileira devemos levar em consideração que os esforços a serem empreendidos para a ampliação do acesso dos negros aos ambientes de produção científica, hoje ocupado majoritariamente por brancos, vão além da simples preparação para o atendimento das demandas materiais desse segmento no contexto da atual “sociedade tecnológica”.

Mais do que isso, atuação nesse campo do conhecimento impacta significativamente na estima e na imagem social da população negra, à medida em que possibilita a seus membros identificarem-se e serem identificados  como pessoas criativas, capazes de produzir conhecimentos considerados relevantes (PASSONI, 2005).

A associação entre tais aspectos subjetivos (a autoestima ,a imagem social dos afro-brasileiros) e o conhecimento científico, tem uma relação direta com o fato de que o prestígio social adquirido pela ciência colocou as pessoas com melhor desempenho nessas áreas em uma condição social também privilegiada, uma vez que o domínio da racionalidade científica em nossa sociedade ainda é sinônimo de superioridade intelectual, a despeito dos recentes avanços trazidos pela psicologia com o conceito das inteligências múltiplas, apresentado por Howard Gardner.

Por outro lado, não podemos deixar de mencionar a histórica participação da própria ciência na construção de estereótipos negativos em relação aos povos africanos e seus descendentes. De fato, foi a ideologia conhecida como racismo científico, vinda da Europa e Estados Unidos, no século XIX, que municiou a elite intelectual brasileira com várias teses que defendiam a inferioridade física, moral e intelectual dos não-brancos, ampliando, com isso, a hierarquia racial e até mesmo orientou políticas governamentais como o incentivo à imigração de europeus com objetivo de promover o branqueamento da população ─ a essa altura, o contigente de negros e mestiços no Brasil foi considerado uma barreira ao ideal de progresso e civilidade, pautado pelos parâmetros eurocêntricos seguidos pela elite nacional.

O racismo científico apesar das inúmeras desqualificações sofridas, ainda hoje, influencia o imaginário social, e é praticado mesmo em ambientes em que se espera a predominância da racionalidade e a descrença em mitos. Desta forma, vale lembrar das famigeradas declarações do então coordenador do curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia que, em 2008, assombrou o país com proposições ofensivas à população negra e a afirmação da existência de deficit cognitivo na população baiana, querendo com isso, justificar o baixo rendimento do curso de medicina nas avaliações do Ministério da Educação. Essa atitude discriminatória tem precedentes na própria história da Faculdade de Medicina, a qual, no século XIX, quando sediada no Terreiro de Jesus, Pelourinho, foi uma das grandes difusoras das teses pseudocientíficas que atentavam contra a imagem social dos negros e mestiços brasileiros.

Esse retrospecto nos faz pensar como é complexo para os jovens estudantes negros e negras brasileiros serem clinetes das escolas públicas e  privadas, em que  o ensino de ciências é extremamente eurocêntrico e cuja  pseudoneutralidade da praxis pedagógica não contempla a análise crítica sobre a hegemonia branca da ciência, nem o papel da ciência ocidental na negação da racionalidade dos povos colonizados.

No entanto, nesses espaços, ao invés dessas reflexões, predomina um ensino mecanicista, que privilegia a mera resolução de exercícios, e que é entremeado por histórias triunfalistas das conquistas branca e masculina no campo da ciência. Com efeito, um estudante branco nunca tem vergonha de sua ascendência européia quando ouvi a história apologética dos europeus, promovendo os avanços da ciência. Entretanto, para as estudantes negras e negras, índios e índias e mesmo as mulheres brancas, fica a seguinte pergunta: por que eles e não nós?

Essas questões emergem devido à freqüente “assepsia” feita no contar da história da ciência ocidental, que a torna “imune” em relação ao racismo e ao sexismo e que omite sua vinculação as propostas expansionistas do imperialismo europeu, o qual com seu caráter exclusivista condicionou à existência da genialidade de referências como Galileu e Newton a não existência de congêneres entre as populações nativas e escravizadas, afetadas pelo colonialismo. Paulus Gerdes, por exemplo, considera que “as ‘histórias’ dominantes da matemática sugerem que (quase) não houve matemática fora da Europa, ‘esquecendo’ de que a colonização contribuiu para a estagnação e eliminação de tradições científicas nas Américas, África, Ásia e Austrália” (GERDES, 1992, p. 9).

Como uma das consequências desse predomínio do eurocentrismo no ensino da ciência temos a desidentificação do estudantes negros com as áreas de ciência e tecnologia, e os efeitos dessa desidentificação são traduzidos em números:  em 2009, segundo dados do INEP (Instituto Anísio Teixeira de Pesquisas Educacionais), o número de estudantes negros (alunos que se autodeclararam pretos ou pardos) matriculados em cursos presenciais associados à ciência e tecnologia como a medicina e a arquitetura, correspondeu a  32,29% e 26,31% respectivamente do contingente de estudantes que se autodeclaram brancos. Quando essa comparação é feita com cursos categorizados dentro do campo das humanidades, como o curso de História, as desigualdades entre os brancos e os afrodescendentes diminuem siginicativamente: os afro-brasileiros matriculados correspondem a 76,06% do contingente de estudantes que se autodeclaram brancos.

Esses dados corroboram  com a a ideia de que, de forma majoritária, os estudantes negros brasileiros tendem a não escolher cursos ligados à ciência e tecnologia por pelo menos dois motivos: primeiro,  reconhecem de forma pragmática as fragilidades de sua principal fonte de educação formal, a escola pública, cujo ensino de ciências é uma lástima, e, segundo, a falta de um ambiente familiar e social com tradição acadêmica, somado a uma ausência de políticas de popularização da ciência voltadas à conquista desse público, torna as carreiras científicas um objetivo distante para esses estudantes, os quais não conseguem se perceber como futuros cientistas a contribuir para o avanço da sociedade.  Para muitos deles, a conquista do primeiro ou segundo grau já é um triunfo suficiente.

Destarte, avalio que a reversão desse quadro de exclusão perpassa pela melhoria da educação básica e a adoção de políticas afirmativas que, por exemplo, concebam projetos de popularização da ciência que levem em consideração as especificidades do público afrodescendete. Em tais projetos, caberia, por exemplo, a exposição das contribuições dos povos africanos e afrodescendentes para a ciência e tecnologia, ao invés de privilegiar uma “história única” que coloca a ciência em geral como um atributo essencialmente branco, desconsiderando o fato de que, assim como as primeiras civilizações, os primeiros passos da ciência, foram dados no continente africano, ou seja, no Egito e não na Grécia, conforme atestou o próprio “pai da História”, o grego Herodoto, que ao visitar o Egito antigo nos legou duas informações que contrariam os eurocentricos: os egípcios tiveram a primazia da ciência e eles eram negros. Nesse sentido faço minhas as palavras do grande historiador senegalês, Joseph Ki-Zerbo (2006,), “não vejo por que razão os primeiros humanos que inventaram a posição erecta, a palavra, a arte, a religião, o fogo, os primeiros utensílios, os primeiros habitat, as primeiras culturas, deviam ficar fora da história!”

Saliento que, o que está posto não é a dúvida quanto ao papel estratégico ou o valor das contribuições da ciência e tecnologia, mas sim, os danos sociais do emprego do racismo e do sexismo, enquanto instrumentos de interdição à ampliação do número de pessoas a atuarem nessas áreas. Para países como o Brasil que pleiteia se constituir em uma nação competitiva em termos de produção científica e tecnológica, não cabe o desperdício de talentos das mulheres e homens negros em função da manutenção de uma quase que exclusividade de brancos na gestão e produção da ciência e tecnologia brasileira.

Referências

GERDES, Paulus. Sobre o despertar do pensamento geométrico. Curitiba: Editora da UFPR, 1992.
HERODOTO. História. 2.ed. São Paulo: Ediouro, 2001.

KI-ZERBO, Joseph. Para Quando África?Entrevista com René Holenstein. Tradução Carlos Aboim de Brito. Ku Si Mon Editora Ltda., 2006, Bairro de Ajuda, 1. ª Fase, Caixa postal 268 – Bissau.

PASSONI, Irma Rossetto. Cidadania em C&T: uma mudança de paradigma. Revista Parcerias Estratégicas, n. 20 (Seminários Temáticos para a 3a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação), Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, Brasília, junho de 2005.


*Mestre em Ensino, Filosofia e História das Ciências pela Universidade Federal da Bahia; Diretor do Instituto Cultural Steve Biko, membro do Núcleo de Estudos em Ciência e Tecnologia André Rebouças (Nectar); Coordenador do Oguntec ─ Programa de Fomento à Ciência e Tecnologia para Jovens Negras e Negras do Instituto Cultural Steve Biko.

CUNHA, Lázaro. O negro e a ciência, uma questão de identidade e cidadania. Ciência & Cultura - UFBA. Disponível em: http://www.cienciaecultura.ufba.br/agenciadenoticias/opiniao/o-negro-e-a-ciencia-uma-questao-de-identidade-e-cidadania/. Acesso em: 09/03/2012.

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