sábado, 5 de janeiro de 2013

Quem é o diabo?


Entre nós


E hoje, qual o papel do "príncipe deste mundo" (João 12.31) e "pai da mentira" (João 8.44)? Desde o Iluminismo, ele deixou de ser uma entidade e passou a ser interpretado como o lado obscuro de cada um. Mas, para o teólogo e pastor batista Fernando Fernandes, ele continua atuante. "Em termos práticos, o Diabo é o fomentador de desordens morais, sociais e espirituais, influenciando as pessoas para a corrupção, para os vícios, para as orgias sexuais, para a exploração social e toda a sorte de atrocidade que atenta contra a integridade do ser humano e contra a espiritualidade sadia e benfazeja que o homem carece experimentar", diz o pastor.
E há também a Bíblia Satânica. Essa eclética coleção de ensaios, comentários e rituais básicos do satanismo é best seller desde que foi lançada em 1969 pelo malucão americano Anton Szandor LaVey (nascido Howard Stanton Levey). Tinha tudo a ver com a época, quando rebeldia, contestação e crenças misteriosas estavam em alta no mundo todo. As primeiras edições do livro, em capa dura, chegam a valer 1000 dólares no site de vendas eBay. Mas, apesar de inspirar centenas de hinos do metal, festas de faculdade, tatuagens e até a Igreja de Satã, com sede em San Francisco, na Califórnia, o livro não é levado a sério. Os teólogos a consideram uma brincadeira do mal (ou mau gosto).
FACES DO MAL
Saiba como cada grande religião encara o Diabo

Judaísmo

No judaísmo, Satã não é exatamente o Coisa-Ruim. A ele cabe pegar no pé da humanidade, apontando nossas falhas. No livro de Jó, ele age como promotor da divina corte, angariando provas de que o homem não merece o amor do Criador. Ele também dá uma mão na construção do bezerro de ouro que os israelitas adoram enquanto Moisés está no Monte Sinai. De qualquer forma, a Torá afirma várias vezes que foi Deus quem criou o bem e o mal.

Cristianismo

Até o início do século 18, a oração de Pai-Nosso dizia "livrai-nos do Demônio". Hoje os católicos pedem simplesmente que Deus os livre "do mal", mas isso não quer dizer que a existência do Diabo tenha sido totalmente abolida das encíclicas papais. Já a presença de Lúcifer no Inferno, torturando almas de pecadores, é uma criação da literatura cristã medieval, pois a Bíblia diz que o Diabo anda solto pelo mundo.

Islamismo

No Islã, Shaitan não tem poderes, apenas fornece más idéias para quem lhe der ouvidos - e todo o mal que fazemos é por nossa escolha. Ele foi expulso do paraíso por não louvar Adão, desobedecendo Alá. No Corão, Satã é inimigo da humanidade, já que Alá é supremo. O "jihad", banalizado pelos terroristas, é a luta contra os desmandos de Shaitan.

Budismo
No budismo não existe Diabo, mas há um sujeito diabólico: Mara. Ele tentou Gautama Buddha, oferecendo-lhe lindas mulheres (em algumas versões, suas próprias filhas). Ele tira a atenção dos homens da vida espiritual, fazendo as coisas mundanas atraentes e procurando transformar o negativo em positivo. Outra interpretação é de que Mara representa os desejos em nossa mente que nos impedem de ver a verdade, uma parte ruim nossa que deve ser derrotada.


HinduÍsmo
Em contraste com as tradições judaico-cristã e islâmica, o hinduísmo não especifica nenhuma força maléfica central, mas reconhece que as pessoas podem realizar atos de maldade quando dominadas temporariamente por entidades conhecidas como asuras. Rahu teria uma característica mais próxima do Diabo dos cristãos, se bem que Vishnu encarna para destruir o mal quando ele se torna muito forte.


Religiões Afro
Na religião iorubá original, Olodumaré é a fonte suprema de tudo, inclusive do bem e do mal. O Diabo, portanto, como força contrária a esse equivalente do Deus monoteísta, não tem lugar. Exu, mesmo identificado com atitudes classificadas de "más" pela moral cristã, é um orixá, ou seja, foi criado por Olodumaré, então nunca atuaria contra os seus princípios.

Tentador dos cientistas


O matemático Gildo Magalhães comanda na Faculdade de História da USP um curso sobre ideologia nas ciências. Ele aponta que, na cultura européia, o misticismo e a bruxaria já andaram próximos dos cientistas. Pesquisas anatômicas feitas com cadáveres, por exemplo, eram facilmente identificadas com feitiços (ver reportagem "Lição de anatomia", nesta edição). Médicos na Idade Média poderiam ser presos e acusados de práticas demoníacas, conforme seus métodos curativos fossem muito ruins ou, paradoxalmente, bons demais para serem aceitos por crenças obscurantistas.
Na Renascença, houve uma fusão de teorias esotéricas da Antiguidade, como o "Corpo Hermético", atribuído a Hermes Trimegisto, com experimentos de cunho científico: era a alquimia, que serviria de base para a química moderna. Um notável exemplo dessa mistura é o alquimista, médico, astrólogo e ocultista Paracelso, cujas pesquisas a ciência bem pôde aproveitar. Mas esses progressos eram vistos com suspeita pela Igreja. "Alguns cientistas eram associados com o Demônio, heresiarcas sempre sujeitos às tentações que o diabo fez a Cristo no deserto", diz Gildo Magalhães.
FESTIM DIABÓLICO O demônio sempre rendeu boas bilheterias, fosse possuindo Linda Blair, em "O Exorcista" (1973), disfarçado de figura fantástica em "A Lenda" (1985) ou na pele de Al Pacino em "Advogado do Diabo" (1997)

Não causa espanto que figuras fundamentais como Kepler e Descartes tenham causado suspeitas entre doutores da Igreja. O alemão Goethe, que além de escritor e poeta romântico era homem de ciência, mostra essa conexão intelectual em seu "Fausto". Na peça, um cientista tentado pelo demônio troca o árduo caminho das pesquisas pelas facilidades de dinheiro, poder e rejuvenescimento - uma fábula que encontra vários exemplos paralelos na história da ciência.
No entender de Gildo Magalhães, o perigo do misticismo é que ele não pode se adequar ao uso da razão. "Pelo menos desde o Iluminismo, só a razão pode criticar a razão, que é o que a ciência tenta fazer", diz. Por esse motivo, há cientistas que esconjuram o ocultismo, como Carl Sagan em seu livro "O Mundo Assombrado por Demônios". Por outro lado, muitos consideram o evolucionismo, mesmo o não-darwiniano, coisa do Capeta.
Estrela de Hollywood
Desde que o cinema é cinema, Satanás é um dos seus personagens mais marcantes. O crítico Fernando Zamith gosta de lembrar do emblemático "Coração Satânico" - cujo nome original, aliás, é "Angel Heart". No filme, o diabo veste a pele de Robert De Niro, um sujeito soturno chamado Louis Cypher, quase Lúcifer. O truque, não percebido até o final do filme, arrepiou muita gente nos anos 1980. Em "O Exorcista", ele encarna no corpo e na alma da jovem Linda Blair. Em "Endiabrado", o Coisa-Ruim é a belíssima Elizabeth Hurley firmando pactos e cobrando a fatura do pobre Brendan Fraser. E, às vezes, ele assusta sem aparecer: em "O Bebê de Rosemary", de Roman Polanski, resta ao espectador imaginar a carinha do filhote do Demo.
E não podia faltar o advogado, figura contra a qual os americanos se divertem em lançar chistes. Em "Advogado do Diabo", Al Pacino usa toda a malícia e malignidade para colocar seu pupilo Keanu Reeves no caminho da perdição. O nome da Besta? John Milton, uma homenagem irônica ao poeta inglês que escreveu "Paraíso Perdido", não por acaso uma obra literária que fala do homem imperfeito que cai em desgraça com Deus. Aliás, Keanu tem outro encontro diabólico em "Constantine", no qual é um exorcista enfrentando anjos e demônios, mantendo um diálogo decisivo com o próprio Coisa-Ruim.
MAS QUE DIABOS? O demônio também é motivo de risada em "South Park" (1999), "O Auto da Compadecida" (2000) e "Endiabrado" (2000). Batiza o gato Lúcifer em "Cinderella" (1950) e assusta se escondendo em "Bebê de Rosemary" (1968)
No celulóide verde-amarelo, ele aparece como Corisco, o diabo loiro cangaceiro de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", clássico do Cinema Novo e obra máxima de Glauber Rocha. Na versão de Guel Arraes para o "Auto da Compadecida", quem coloca os chifres é Luís Mello. Zé do Caixão, criação infernal de José Mojica Marins, acabou de rodar este ano um novíssimo filme sobre seu personagem mais famoso (Coffin Joe na versão americana). Sobra até para os filmes infantis: na animação "Cinderella", de Walt Disney, o mimado gato da madrasta leva o singelo nome de Lúcifer.
Adversário de todos
Uma das estrelas do holismo mundial mora em São Paulo: é o xamã australiano Rowland Barkeley, que fundou uma terapia de "liberação energética" chamada Antos. Lida com entidades do Ifá, o I-Ching africano, mas sem incorporá-las. Viaja o mundo todo. Ninguém melhor do que ele para falar do Diabo dos pagãos. Barkeley avalia que em muitas culturas, ele é algum tipo de adversário, quase sempre símbolo de vasta energia e de competência. "Uma pessoa com pouca disciplina pessoal irá atacar uma pessoa competente chamando-a de diabo", diz o australiano. "Qualquer pessoa em altos níveis de criatividade irá acessar a força do Universo pelo atalho do instinto, um estado parecido com uma possessão. Pessoas tendem a atacar quem tem esse domínio." Estudioso da religião dos orixás, Barkeley se espanta com a atávica tentativa de missionários cristãos mostrarem que a figura de Exu é diabólica. "Exu é um mensageiro, como Jesus. Eles são o mesmo arquétipo, têm a mesma função."
Se a versão pagã é controversa, a cristã não deixa dúvidas: o Diabo é do mal. (Veja o Diabo nas principais religiões no quadro "Faces do Mal".) Conforme o texto bíblico, o Diabo é um anjo, um querubim ungido que, movido pela soberba, se revoltou contra Deus. Derrotado, foi banido do Céu, junto com os que seguiram em sua rebelião, que viraram os demônios. Na Bíblia, o nome pessoal do Diabo é Satanás, derivado do hebraico "satan", que significa adversário.
No banco dos réus
O filósofo Michel Foucault foi o primeiro a teorizar sobre a divisão social entre "loucos e sãos" (ou "possessos e limpos"). Com o fim da lepra na Europa, os leprosários estavam condenados à extinção. Para manter instalações e empregos, nada mais prático do que arrumar novos inquilinos. Nasce a casta dos loucos, volta e meia ampliada com as "vítimas de possessão demoníaca".
Essa interpretação chegou aos tribunais brasileiros. Guido Arturo Palomba, mais famoso psiquiatra forense do Brasil, afirma que epilepsias psicóticas "sempre entravam nos processos como possessões". Basta examinar a origem da palavra: epilepsia é "ep" (acima) mais "lepsis" (abater). "Os antigos acreditavam que era alguma força que vinha por cima e abatia o indivíduo", diz Palomba.
O psiquiatra relata um caso exemplar. Uma mulher foi com uma amiga a uma loja de umbanda. Conheceu um homem. As duas, mais ele, vão para uma casa. Fazem um ritual de macumba. Uma das mulheres entra em transe e incorpora a entidade Pombagira. Pega uma faca e desfere um golpe contra o homem. Sai do transe e tenta acudi-lo. Ele morre. A assassina diz que nada lembra e não tem culpa: quem matou foi a Pombagira. Apesar de todas as alegações de possessão demoníaca, a prova final foi dada com eletroencefalograma. A assassina era epilética, dona de disritmia em estado crespuscular, em que padecia de atos semi-automáticos, sempre com amnésia. A ciência também exorciza.
Vá fundo
Para ler


• "Satã: uma Biografia", Henry Ansgar Kelly. Ed. Globo. 2007
• "A História do Diabo", Vilem Flusser. Annablume. 2005






TOGNOLLI, Claudio Júlio. Quem é o diabo?. GALILEU. Acesso em: 05/01/2013. Disponível em: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Galileu/0,,EDG80149-7942-197-6,00-QUEM+E+O+DIABO.html. 

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