A animalização do diferente foi uma prática bastante comum realizada por estudiosos em nome do progresso científico no Brasil e no mundo. Atos de crueldade e racismo podiam ser conferidos e mesmo aplaudidos em Exposições Antropológicas, os “freaks shows”, considerados marcos da popularização da Ciência à época
Nádia Conceição*
A existência de uma raça ariana superior não é um pensamento excludente que ficou no passado. Ainda podemos testemunhar a perpetuação de teorias que reforcem a permanência de um racismo velado e extremamente cruel que, muitas vezes, fica camuflado, porém reforçado por leigos e cientistas renomados dentro do campo científico. Pois bem, esses cientistas acabam reproduzindo, por gosto ou não, um tipo de racismo denominado de Racismo Científico.
O Racismo Científico tem registro desde os primórdios da teoria da evolução humana de Charles Darwin, quando atestava a existência de raças inferiores e que poderiam ser capazes de evoluírem com o passar dos tempos. Já o naturalista francês Buffon pensou, ainda no século XVIII, na ideia de degeneração, que seria amplamente usada em meados do século seguinte para se discutir as misturas raciais, sobretudo no Brasil. Segundo ele, se não existisse o fato de que o negro e o branco podem: “Produzir juntamente haveria duas espécies distintas; o negro estaria para o homem como o asno para o cavalo, ou antes, se o branco fosse homem, o negro não seria mais homem, seria um animal à parte como o macaco”.
Essas teorias foram amplamente difundidas através do cientificismo na Europa, cujo discurso científico “recebeu largo espaço no Brasil, questionando e disputando espaços inclusive com a religião e a Igreja, até então grandes fontes dos discursos fechados e competentes da época”, afirma o pesquisador Flávio Raimundo Giarola da Universidade Federal de São João del-Rei, (UFSJ), no artigo Racismo científico: O legado das teorias bioantropológicas na estigmatização do negro como delinquente.
O francês Louis Couty, na época professor na Escola Politécnica do Rio de Janeiro e no Museu Nacional, pode ser tomado como exemplo de viajante que tendeu a ver o Brasil sob a ótica negativa do racismo europeu. Em sua publicação “O Brasil em 1884: Esboços Sociológicos” ele atribuiu às populações africanas como causadoras de diversas mazelas do país e, por isso, clamava pelo fim da escravidão: “Uns a querem por sentimentalismo, outros por utilidade; estamos entre esses últimos. O escravo é mal trabalhador; sua produção é muito cara, de má qualidade e pouco abundante. Tudo isso é hoje em dia demonstrado por vários estudos precisos que não podemos aqui resumir e a inferioridade do negro em relação ao homem livre não é negada por mais ninguém”.
Produções científicas como essas que foram fundamentais para a disseminação do racismo no Brasil. Algumas delas foram tiveram ênfase na palestra Zoológicos humanos? Exibições antropológicas dos séculos XIX e XX, no contexto de um tratamento sobre o racismo científico, proferida pelo doutor em Biologia pela Universidad Autónoma de Madrid, Juanma Sánchez Arteaga (Ihac-Ufba), no primeiro Café Científico Salvador de 2014, realizado na Biblioteca dos Barris.
Na apresentação, o pesquisador mostrou que durante todo o século XIX e até quase completar a primeira metade do XX, numerosos países Europeus e Americanos e também no Brasil organizaram diversas “exposições antropológicas de caráter ‘científico’, nas quais membros nativos de diferentes comunidades indígenas, especialmente transportados desde suas terras para participar em tais eventos, foram exibidos publicamente com uma intenção educativa”, afirma Arteaga.
O objetivo do Café Científico foi analisar diversas tentativas de popularizar o conhecimento científico em antropologia e biologia humana por meio da exibição de nativos, com ambições científicas, tanto para popularização do saber antropológico da época entre o público leigo quanto para fornecer uma oportunidade para o estudo “in vivo” desses povos por parte de médicos, antropólogos ou especialistas em biologia humana.
A partir dessa forma de popularização da ciência, equivocada e excludente, existia uma forte animalização dos nativos implícita em muitos desses shows, que algumas vezes eram realizados em parques zoológicos, e exibidos em gaiolas junto com animais. Essa forma de violência é denominada por alguns autores e “Zoológicos Humanos”.
No Brasil, segundo Arteaga, a “Primeira Exposição Antropológica Brasileira” que tinha como foco as exibições humanas como principal atração, aconteceu no Rio de Janeiro, em 1882, eram os chamados “freaks shows” ou as “exposições missionais” e consideradas pelos organizadores e pelo público como sendo de alto interesse científico para a popularização da ciência da época, assim como com o discurso científico da biologia humana e da etnocêntrica antropologia física, apresentado ao público carioca. Nessa exposição foi exibido um grupo de índios Botocudos, sendo descritos pelos organizadores “como representantes brutalizados e semibestiais da humanidade nos seus primórdios evolutivos, mais próximos aos primatas do que às supostas “raças superiores” sob muitos aspectos”.
De acordo com Arteaga, essas práticas são uma forma de enxergar o outro racial como um “semi-animal”, selvagem apresentados em zoológicos humanos, perpetuando, assim, o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu chama de Violência Simbólica, ou seja, uma forma de coação que “se apoia no reconhecimento de uma imposição determinada, seja esta econômica, social ou simbólica. Ela se baseia na fabricação contínua de crenças no processo de socialização, que induzem o indivíduo a se posicionar no espaço social seguindo critérios e padrões do discurso dominante”.
Para que essas práticas possam ser repensadas e não disseminadas dentro dos espaços científicos é preciso que as universidades e centros de produção da ciência pensem seu desenvolvimento, levando em consideração a realidade cultural do local em que estão inseridos. “A ciência tem responsabilidade enorme, com suas teorias, na legitimação do racismo, sobretudo as Ciências Naturais e sua rivalidade com as Ciências Sociais”, afirma Arteaga.
O pesquisador reforça ainda que o racismo científico, que exclui os negros das academias e os marginaliza dentro dela não é uma exclusividade dos americanos, mas dos brasileiros também, a exemplo do que aconteceu recentemente quando o coordenador de medicina da Universidade Federal da Bahia, Antônio Dantas, 69, disse que “o berimbau é o tipo de instrumento do indivíduo quem tem poucos neurônios”.
“O que quero é suscitar reflexões concernentes tanto à popularização da ciência quanto à educação em ciência, em especial quanto aos valores ideológicos subjacentes ao conhecimento científico e aos processos de alterização que tem conduzido à marginalização, estigmatização e inferiorização de numerosos grupos humanos ao longo da história das ciências. Nós cientistas deveríamos fazer muito mais. Temos que refletir quanto ao sistema de ensino que temos”, problematiza Arteaga, que reforça que é preciso sair da mera reprodução de métodos e discursos antigos, “o essencial é pensarmos em reformular os currículos dos cursos de Ciências Naturais, saindo de uma formação meramente técnica e que se passe a conhecer as histórias das disciplinas, o que não vemos em Biologia”, finaliza.
*Nádia Conceição é jornalista, estudante de Produção Cultural , mestranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade – IHAC e bolsista da Agência de Notícias FACOM – UFBA
CONCEIÇÃO, Nádia. O lado sujo da Ciência e a consolidação do Racismo Científico. Ciência e Cultura. Disponível em: <http://www.cienciaecultura.ufba.br/agenciadenoticias/noticias/o-lado-sujo-da-ciencia-e-a-consolidacao-do-racismo-cientifico/>. Acesso em: 12 abr. 2015.
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