Presentes no Brasil durante todo período colonial, os rituais de fé africanos ganharam seu primeiro templo no início do século XIX, erguido nos fundos de uma igreja em Salvador
Renato da Silveira*
Desde o século XVII se tem notícias de cultos africanos em terras brasileiras. De fato, há cerca de vinte anos uma imensa massa de informações sobre o que se convencionou chamar “calundu colonial” começou a ser revelada por historiadores e antropólogos brasileiros, que, investigando nos arquivos públicos e da Santa Inquisição, se depararam não apenas com novos dados mas também com novas interpretações sobre um tema até então mal conhecido. Os animadores desses misteriosos cultos de origem africana começaram então a ocupar a cena historiográfica. Figuras como o congolês Domingos Umbata, flagrado em 1646 pelos visitadores da Inquisição na capitania de Ilhéus; a angolana Branca, ativa na cidade baiana de Rio Real nos primeiríssimos anos do século XVIII; outra angolana, Luzia Pinta, muito bem sucedida na freguesia de Sabará, nas Minas Gerais, entre 1720 e 1740; a courana Josefa Maria ou Josefa Courá com sua “dança de Tunda”, estabelecida em 1747 no arraial de Paracatu, Minas Gerais; o daomeano Sebastião, estabelecido em 1785 na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano; e enfim Joaquim Baptista, ogan (uma espécie de líder de terreiro) do “culto ao deus Vodum”, no Accu de Brotas, freguesia periférica da cidade da Bahia, em 1829. A esta lista poderia ser acrescentada uma significativa aquarela de Zacharias Wagener, artista que viveu no Pernambuco holandês de 1634 a 1641, representando uma festa de africanos e trazendo preciosas informações visuais sobre a variedade e a disposição dos atores, figurinos e instrumentos musicais.
Os adeptos dos calundus organizavam suas festas públicas na residência de uma pessoa importante da comunidade, ou então em casas também destinadas a outras ocupações. Não tinham templos propriamente ditos, mas também não se tratava de simples cultos domésticos, uma vez que tinham um calendário de festas, iniciavam vários fiéis em diferentes funções e eram frequentados por um número razoavelmente grande de pessoas, inclusive brancos, vindos de diversos arraiais. Ademais, o sacerdote principal tinha condições de ganhar bem a vida com o atendimento individual e se tornar financeiramente independente ao prestar à população serviços essenciais que o Estado colonial não assegurava satisfatoriamente.
A documentação da época permite identificar três tipos de sacerdócio, às vezes reunidos numa mesma pessoa, como Luzia Pinta, que era “calunduzeira, curandeira e adivinhadeira”. Isso significa que, além de oficiantes religiosos, esses personagens sabiam preparar tisanas, cataplasmas e ungüentos que aliviavam os males corriqueiros dos habitantes da colônia, eram também capazes de curar doenças mais graves como a tuberculose, a varíola e a lepra, usando os recursos da farmacopéia tradicional, participaram inclusive do combate às epidemias que assolaram a Bahia em meados do século XIX; também sabiam curar distúrbios mentais ou espirituais, usando tratamentos combinados e complexos. Na cidade de Rio Real, no interior baiano, o Santo Ofício identificou o caso de um senhor empresário que pagou caro por pelo menos duas escravas curandeiras afamadas, montando com elas uma espécie de clínica onde se praticavam vários tipos de cura, e dividindo com elas todos os lucros. Desses registros, surgiram notícias de curandeiros e adivinhadores sendo recebidos em monastérios, nos meios ricos, onde eram bem pagos, e até agraciados pelo rei de Portugal por bons serviços prestados. A eficiência dos saberes africanos era pública e notória, mas na prática sua existência questionava o monopólio da cura atribuído à Igreja e mesmo à medicina oficial.
Como o escravismo se configurava como um regime de opressão, sempre se pensou que os calundus tivessem sido duramente perseguidos. Mas, de fato, se isso fosse realidade, seus líderes jamais poderiam ter se estabelecido estavelmente, como, por exemplo, Luzia Pinta, que se manteve atuante durante vinte anos na cidade mineira de Sabará. Na verdade, existia no seio da classe governante um debate constante a respeito da melhor maneira de controlar a massa escrava e liberta. Se a política tirânica parece ter predominado nos períodos de crise, em grande parte do tempo foi a política moderada que predominou.
Assim, desde o século XVII os calundus funcionavam normalmente no Brasil, pelo menos até que seus líderes se tornassem muito visíveis, angariassem clientela branca ou se envolvessem em revoltas. Faziam parte da paisagem social porque eram funcionais, respondiam a várias necessidades de uma população carente e não pretendiam ser seitas secretas. Sua vocação era se tornar, como na África, instituições públicas reconhecidas.
Desse lado do Atlântico, os calundus de diversas origens africanas, como a banta (das regiões ao Sul da África, como Angola, Congo, Moçambique) e jeje (da África Ocidental, atual República de Benin), por exemplo, acabaram aderindo ao Catolicismo. Já o sincretismo com os cultos ameríndios deu-se apenas com os bantos. Alguns, como o de Luzia Pinta, misturaram tradições africanas, católicas e indígenas no mesmo ritual, dando origem ao que se convencionou chamar umbanda.
Ao contrário dos anteriores, o calundu jeje do Pasto de Cachoeira era uma organização tipicamente urbana, e o primeiro a ter como endereço uma rua, embora de periferia. Já o candomblé do Accu é um dos vários cultos jejes que começaram a funcionar no Recôncavo Baiano em meados do século XIX, situados em freguesias urbanas apenas no nomes – eram, na verdade, chácaras cercadas de mata atlântica.
Esses cultos jejes eram mais marcadamente comunitários e com fortes tradições litúrgicas, as que foram implantadas na Bahia. Nesse processo, receberam apoio dos calundus bantos existentes, que detinham um saber ritual acumulado, bem adaptado ao meio. O próximo passo, ousado, nessa trajetória de constituição da religião afro-brasileira, seria precisamente organizar o culto na cidade, exibi-lo como instituição urbana legítima, buscar sua oficialização. Foi em Salvador, no bairro da Barroquinha, que essa transição foi tentada com relativo sucesso.
Segundo as tradições orais dos nagôs (africanos iorubas, originários de regiões da Nigéria, Benin e Togo) baianos, o primeiro candomblé de sua linhagem foi fundado em terras situadas atrás da capela de Nossa Senhora da Barroquinha, no centro histórico de Salvador. Segundo se conta, existia uma irmandade de negros ali funcionando, cujos associados teriam sido os fundadores africanos. Hoje, esse candomblé é um dos maiores e mais respeitados do Brasil, chama-se oficialmente Ilê Axé Iyá Nassô Oká, em homenagem à sua fundadora principal, mas é popularmente conhecido como Casa Branca do Engenho Velho da Federação.
Não há nas tradições orais referências à data de fundação do candomblé da Barroquinha. Mas se tem conhecimento de três momentos importantes do local: a fundação inicial de um pequeno culto na casa de uma sacerdotisa filiada à irmandade e residente em uma das ruas do bairro; o arrendamento de um terreno situado atrás da igreja, onde foi fundado o candomblé propriamente dito; e um momento de perseguição policial, invasão do templo e expulsão do bairro.
A investigação sobre a data inaugural motivou antropólogos ligados ao Axé Opô Afonjá, filial do candomblé da Barroquinha, os quais fizeram estimativas que vão do final do século XVIII a 1830. Em 1943, por ocasião do I Primeiro Congresso Afro-Baiano, teve lugar na Casa Branca uma exposição comemorativa dos 154 anos de sua fundação, segundo a qual o candomblé teria então sido fundado em 1789. Essa data coincide com a chegada à Bahia dos primeiros escravos nagôs do reino de Ketu (cujo território foi cortado em dois pela fronteira Nigéria-Benin), de onde teriam vindo os fundadores, bem como com a oficialização da irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, em 1788.
Entre os primeiros escravos provenientes do reino de Ketu vieram parar na Bahia alguns membros da família real Arô, capturadas na cidade de Iwoyê, saqueada em janeiro de 1789 pelo exército do reino Daomé (atual República de Benin). A mãe do Aláketu Akibiorru, o rei então entronado, era natural daquela cidade, que tinha relações rituais muito estreitas com a capital. Tudo indica que a primeira das fundadoras do candomblé da Barroquinha, Iyá Adetá, veio nessa leva de escravos provenientes de Iwoyê. Após cerca de nove anos de cativeiro, Iyá Adetá teria conquistado a alforria e ido morar na Barroquinha, onde fundou, no finalzinho do século XVIII, um culto doméstico a Oxóssi na sua casa, semelhante a alguns dos calundus colonias passados em revista.
Ora, no princípio do século XIX começa a crescer a população escrava baiana proveniente da região jeje-nagô, aumentando o contingente de freqüentadores do calundu de tia Adetá e despertando o desejo, naquele grupo desenraizado, de possuir um espaço apropriado à fundação de um verdadeiro terreiro. Esta possibilidade existia no próprio bairro, pois as terras devolutas atrás da igreja se prolongavam em uma área arborizada e um pântano que confinava com as hortas do mosteiro de São Bento. O terreno contíguo à capela pertencia a um casal filiado à irmandade branca de Nossa Senhora da Barroquinha, que dividia com a irmandade negra do senhor dos Martírios a administração da igrejinha. O arrendamento começou a ser negociado em 1804 e foi concluído em 1807, e é nesse momento que se concretizou a possibilidade de passar de culto doméstico a terreiro.
A virada do século XVIII para o XIX foi na Bahia uma época de prosperidade e descontração política, porém, de 1805 a 1809, o governo tirânico do Conde da Ponte se lança em implacável perseguição de africanos, criando um clima de tensão na capitania, inadequado aos vôos da imaginação. Em 1810 começaria, contudo, o governo reformista e liberal do Conde dos Arcos, enviado pela família real para modernizar a Bahia. O novo governador tornou-se irmão honorário da irmandade dos Martírios logo em 1811, era partidário da corrente moderada da ideologia colonialista, cuja estratégia era encorajar as manifestações culturais das diversas “nações” africanas, pequena liberdade que estimularia a diferença entre elas - pensava ele - impedindo-as assim de se unir contra a ordem colonial.
Nessa conjuntura, o projeto de fundação do terreiro da Barroquinha ganhou novo fôlego. Em 1812 um requerimento assinado pelos diretores dos Martírios pediu licença à Câmara de Vereadores para construir um salão nobre, anexo à igreja, obtendo assim o consentimento oficial para manter um espaço para as suas reuniões. A comunidade jeje-nagô, que estava crescendo na Bahia e provavelmente ganhando importância na irmandade dos Martírios, deve ter, se não comandado, pelo menos se associado a este esforço. Nesse momento de prosperidade o terreiro deve ter sido ampliado, ganhando mais equipamentos, mais espaço e mais confiança. Eis o cenário que viu surgir na Barroquinha o Iyá Omi Axé Airá Intile, dirigido por Iyá Akalá, a segunda das fundadoras apontadas pela tradição.
Segundo as tradições orais da Casa Branca, a grande novidade introduzida pelo terreiro da Barroquinha foi ter organizado, pela primeira vez, o candomblé “como sociedade”. Que poderia significar isso? Vamos dar uma voltinha na África, para ter uma visão mais abrangente dessa história. Em meados da década de 1830 a capital do maior dos Estados nagô-iorubás, o império de Oyó, foi saqueada pelas tropas fundamentalistas do califado de Sokotô e do emirado de Ilórin. Começaria então um grande êxodo da população dessa região, fundando uma nova capital e reorganizando as forças do império em um território mais ao sul.
De fato, a queda da capital de Oyó provocou uma guerra civil destruidora, que se prolongaria até o final do século. Verdadeiras multidões de prisioneiros dessa guerra vieram parar na Bahia como escravos, de modo que, em meados do século XIX, mais da metade da população escrava baiana já era nagô-iorubá. Subgrupos étnicos de todas as regiões ocupadas pelos iorubás na África Ocidental, a chamada Iorubalândia, como oyós, ijexás, ketos, efans, dentre vários outros, trouxeram suas divindades para o exílio, as quais foram sendo “assentadas” no terreiro da Barroquinha. Ao mesmo tempo algumas associações urbanas daquela origem, chamadas egbés, foram sendo organizadas clandestinamente na Bahia, desde as primeiras décadas do século XIX. A maioria desapareceu com o tempo, deixando, entretanto, alguns traços visíveis, títulos, máscaras, cantigas ou objetos de culto, associações femininas cívico-religiosas. Além do bem sucedido culto dos orixás, também ficou pra contar a história o culto dos Eguns (almas de mortos), que mantém apenas alguns terreiros, mas dá ainda hoje mostras de vitalidade.
Por causa desse grande contingente nagô-iorubá, a Bahia foi levada em consideração pelos estrategistas da reorganização do Império. As tradições contam que vieram pessoas dos escalões superiores dos estados iorubás, em missão secreta, para organizar os cultos assentados na Barroquinha e articulá-los aos egbés baianos. A mais importante delas foi Iyá Nassô, personalidade do primeiro escalão do cerimonial do palácio de Oyó. Essas pessoas criaram uma nova forma de organização, ao estruturar o grande candomblé de Ketu tal qual é conhecido hoje.
O candomblé da Barroquinha foi o espaço que abrigou um grande acordo político reunindo os nagô-iorubás da Bahia, sob a liderança dos partidários das divindades Oxóssi de Ketu e Xangô de Oyó. Lembremos das duas festas principais do calendário da Casa Branca que comemoram sua fundação: a principal, dedicada a Oxóssi, no dia de Corpus Christi, e a segunda, dedicada a Xangô, no dia de São Pedro. O compromisso da elite dirigente foi firmado na estrutura espacial básica do candomblé: o terreiro, no seu conjunto, pertence a Oxóssi, o onilé, o senhor da terra, enquanto que o barracão central, lugar da festa pública, pertence a Xangô, o onilê, o senhor do palácio. O acordo entretanto contou com vários outros subgrupos iorubanos aliados.
Do ponto de vista ritual, o caráter fundamentalmente inovador do candomblé da Barroquinha foi que, pela primeira vez na história da religião africana, o culto de todos os orixás foi reunido no mesmo templo, o que pressupõe uma ordem unificada das hierarquias dos diversos cultos, sob o comando da iyalorixá, a sacerdotisa suprema. Além do mais, as lideranças dos egbés iorubanos da Bahia foram convocadas, recebendo títulos no culto dos principais orixás. Essas lideranças eram eventualmente dirigentes de organizações oficiais, como a irmandade do Senhor dos Martírios ou a devoção feminina da Senhora da Boa Morte, fundada na igreja da Barroquinha. O candomblé deixou portanto de ser apenas uma casa de culto para tornar-se uma organização político-social-religiosa complexa.
Na composição do candomblé da Bahia, as diferentes etnias da Iorubalândia, como os ijexás e efans, numericamente mais expressivos do lado de cá, não poderiam ser ignoradas. Assim, no barracão da festa pública, foram plantados quatro pilares centrais representando os quatro cantos do país iorubá, cada pilar dedicado a um dos regentes da casa, ao Oxóssi de Ketu, ao Xangô de Oyó, à Oxum de Ijexá e ao Oxalá de Efan. Essas são as quatro tradições mantidas na Casa Branca: os candomblés de Ketu na Bahia não seguem apenas a tradição jeje-nagô, mas também as tradições de outras etnias: oyó (ou iorubá-tapá), ijexá e aon efan. (mesma coisa?)
A memória oral relata que, a uma certa altura, o terreiro da Barroquinha foi invadido pelas forças policiais da província, sendo o candomblé obrigado a abandonar o local, mas ninguém tem a menor idéia de quando se deu a mudança. Sabemos que, em 1855, a Casa Branca já funcionava no lugar onde atualmente se encontra, no bairro da Federação. A década de 1850 foi de predomínio do grupo conservador liderado por Francisco Gonçalves Martins, um homem da linha dura que havia sido chefe de Polícia durante o grande levante dos malês, em 1835. 1851 foi o ano de chegada da ideologia do progresso ao Brasil, quando então as elites sociais tentaram esquecer o passado colonial e adotar um modelo moderno de sociedade, no rastro da Europa e da América. Nesse novo contexto, era preciso provar ao mundo que éramos ocidentais “civilizados” e para tanto incrementamos a imigração européia visando “limpar” nossa raça, o que, segundo doutrinas científicas então prestigiosas, era a única maneira de nos habilitarmos ao progresso.
A perseguição ao candomblé da Barroquinha foi parte dessa política, que o obrigou a procurar o “seu lugar”. A tirania colonial, mantida mesmo depois da independência política, não poderia jamais permitir que uma organização africana se tornasse centro. Por isso o candomblé da Barroquinha foi obrigado a recuar para a periferia, para o engenho Velho da Federação, onde até hoje gloriosamente se encontra, dividindo espaço na cidade de Salvador com outros terreiros, como o Gantois e o Axé Opô Afonjá, que mantêm viva a fé que atravessou o oceano.
*Renato da Silveira é professor da Universidade Federal da Bahia (UFBa), doutor em antropologia pela École de Hautes Études em Sciences Sociales de Paris.
SILVEIRA, Renato da. Do Calundu ao Candomblé. Revista de História. Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/do-calundu-ao-candomble>. Acesso em: 17 jun. 2015.
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