Como Cultura ressignificou, em dez anos, os subúrbios. Por que movimento precisa mostrar que sua importância vai muito além do social
Desde a década de 1990, quando o Movimento Hip Hop consolidou-se na periferia de São Paulo e na maioria das cidades da Região Metropolitana, surgiu uma cultura com características próprias. Sua expressão traduz este espaço social suburbano, com toda a complexidade de suas comunidades. Uma cultura que afirma positivamente uma região ainda hoje estigmatizada pelo quadro de pobreza e violência. Uma arte que vem ressignificando o próprio conceito de periferia, a partir de uma nova noção de pertencimento. Ela identifica artistas portadores de uma estética original. Seus contornos podem ser observados especialmente na produção literária que se expandiu, nos últimos dez anos, por toda a periferia paulistana. Ao observar a literatura que surge daí, percebe-se de forma nítida a busca de um desenvolvimento estético para as criações.
Essa atenção com os aspectos estéticos, tão evidente na literatura, é fundamental e necessária. A cultura da periferia goza de um reconhecimento que se apoia principalmente na dimensão ética. É valorizada como resistência, dadas as condições adversas que assolam os bairros mais afastados do centro. Isso confere uma visibilidade importante, mas confina a produção artística no campo unicamente ideológico, retirando-lhe a possibilidade de ser apreciada também por sua qualidade artística.
Abordar a literatura com rigoroso foco na produção estética permitirá identificar alguns parâmetros de análise necessários para entender uma cultura emergente, em um contexto social de pobreza, conflitos e disputas. O estudo de livros publicados por autores da periferia, em comparação com uma linhagem de autores reconhecidos, pertencentes às tradições literárias das quais a literatura periférica é tributária será o caminho que percorrerei por meio dos textos que publicarei nesta coluna.
Os livros aqui observados não serão tratados como objetos desvinculados da realidade e sim como produto de práticas culturais. Porém, as criações literárias estarão no centro da reflexão, até para não correr o risco de a prática cultural da qual são originárias, diluir sua importância como produto artístico.
O literatura periférica na tradição do hip hop
A visão sobre periferia que prevaleceu até a década de 1990 caracterizava-a como área urbana homogênea, marcada por alta densidade populacional, baixa renda, elevados índices de violência e precariedade urbana.
Este olhar criou um estigma, resultado de segregação não apenas geográfica, econômica e social – mas também cultural. Nas bordas da metrópole reside o abandono. Em um lugar onde os serviços básicos como saneamento, saúde, educação, moradia e transporte são escassos, equipamentos e políticas culturais eram (e ainda são em muitas regiões) praticamente inexistentes.
Porém, foi no campo da cultura que surgiu, na última década do século XX, uma afirmação positiva da condição periférica. O Movimento Hip Hop que despontou na década de 1980, tendo o centro da cidade como ponto de encontro, se espraiou na década seguinte para as áreas suburbanas, de onde boa parte de seus adeptos era oriunda1. Invocava, nas letras de rap, uma afirmação de pertencimento à periferia que veio ressignificar o sentido da expressão, até então marcadamente pejorativa. A partir do hip hop, uma forte cena cultural surgiu nos extremos da metrópole.
Inspirados no rap, que é ritmo e poesia (rythm and poetry), surgiram poetas e poetisas que transpuseram para a escrita a palavra rimada e cantada dos MC’s. Sem perder a força da oralidade, motivadora dos saraus que se proliferam por toda a periferia, passaram a publicar seus poemas em fanzines, abrindo caminho para a narrativa ficcional que inaugurou a literatura da periferia. O marco fundador desta produção literária – ainda que não seja a obra pioneira – foi o livro Capão Pecado, do escritor Ferréz, publicado em 2000, marco fundador desta produção literária, ainda que não seja a pioneira2.
Ferréz e o surgimento de uma literatura das periferias
Resultado de vários fatores, porém tendo o hip hop como manancial, a cena cultural que hoje exibe uma grande diversidade de linguagens artísticas, começa a se formar em 2000. Emblematicamente, é o começo de década, de um novo século e um novo milênio. Os Racionais MC’s haviam alcançado a consagração e viviam do êxito avassalador do CD Sobrevivendo no Inferno, lançado em 1997. Coerentes com sua postura arredia à mídia, venderam mais de um milhão de discos sem aparecer na TV, nem fazer qualquer tipo de promoção que não fosse seus shows. O mito estava consolidado e o Capão Redondo (na foto), reduto de Mano Brown virou uma espécie de símbolo maior de uma identidade periférica. O orgulho de se afirmar morador daquele bairro da zona sul de São Paulo passou a ter enorme valor simbólico. Marcou uma geração de artistas e ativistas culturais que surgiram neste distrito com mais de 200 mil habitantes e, em seguida, em toda a periferia sul e demais quebradas da cidade.
Um jovem de vinte e poucos anos, morador do Capão Redondo, foi afetado profundamente por este sentimento de orgulho periférico. Reginaldo Ferreira da Silva, conhecido como o Ferréz (junção de Virgulino Ferreira e Zumbi) já havia publicado um livro de poesias em 1997, ano do lançamento do clássico CD dos Racionas MC’s. O aspirante a poeta abandonou sua veia lírica e dedicou-se à narrativa de ficção em prosa. Escreveu e lançou em 2000 o romance Capão Pecado. Editado pela hoje inativa Labortexto Editorial, a obra, com “orelha” de Mano Brown, teve grande repercussão3 e abriu espaço para outros autores, ditos marginais naquela Editora4.
Ferréz, àquela altura, já se dedicava ao comércio de roupas. Havia criado a 1daSul, grife de moda e acessórios, cujos produtos tiveram grande aceitação, expandindo-se rapidamente pela capital, Grande São Paulo e outros Estados. O escritor abriu lojas no Capão Redondo e em Santo Amaro, ampliou os negócios, mostrou-se um empresário de visão e grande capacidade de gestão. Seu empreendimento, embora com fins lucrativos, segue preceitos de comercio justo e economia solidária. Parte de seus ganhos são revertidos em projetos sociais na comunidade onde mora e investimentos culturais como Selo Povo5.
Dado seu sucesso literário e empresarial, Ferréz tornou-se uma referência na periferia de São Paulo. Passou a dar palestras e participar de diversos eventos. Tornou-se colunista da revista Caros Amigos. Esta condição permitiu-lhe publicar três volumes da edição especial Caros Amigos: Literatura Marginal no começo da década. Venderam cerca de 50 mil exemplares lançando dezenas de escritores e escritoras das periferias de São Paulo e de várias partes do Brasil6. Em 2005, Ferréz lançou a coletânea Literatura Marginal – Talentos da escrita Periférica, pela Editora Agir. Mais um passo para o fortalecimento da cena literária da periferia.
Por essas razões, considero Ferréz, a partir da publicação de Capão Pecado, fundador de um movimento literário na periferia de São Paulo. Um marco político e estético: sua escrita exerce importante influência em diversos autores que, a partir da segunda metade da primeira década do século, fizeram surgir inequivocamente uma cena cultural na periferia paulistana.
A estética no centro do debate
A efervescência da cultura produzida se dá principalmente depois de 2005. Essa nova etapa passa a impor ao movimento outras exigências. Não se trata mais, apenas, de afirmar a condição periférica pela exclusão social a que estão submetidos seus protagonistas e precariedade dos meios que lhe são acessíveis para seu desenvolvimento cultural. Daí para frente o que será observado (pela mídia e pela universidade, espaços maiores de legitimação, embora não únicos) é a produção artística que emerge dessa cultura suburbana. Se não for assim, a arte produzida na periferia ficará relegada a um fenômeno de grande impacto social, porém pouca repercussão estética. Para Heloísa Buarque de Hollanda “o que está agora em jogo é a construção da legitimidade e da visibilidade do intelectual e do artista da periferia7”. A coluna Literaturas Periféricas buscará evidenciar a estética – ou estéticas – que surgem dessa arte. Terá foco na produção literária, observando-a num contexto mais amplo das linguagens artísticas desenvolvidas na periferia.
Tomando por base as premissas de Raymond Willams sobre a cultura comum, Maria Elisa Cevasco argumenta que, “a questão é dar condições para que todos sejam produtores de cultura, não apenas consumidores de uma versão escolhida por uma minoria”8. Sendo assim, a ampla produção cultural que se vê na periferia, notadamente na literatura, revela: parte de escritores oriundos das classes trabalhadoras pobres residentes nessas regiões apropriou-se dos meios para produzir um tipo de arte historicamente dominada pela elite ligada às classes dominantes.
Entender os mecanismos dessa apropriação e o processo criativo da elaboração de textos literários dará condições para perceber uma estética original, portadora de sentidos que subvertem os padrões estabelecidos dos cânones. Uma estética que é ruptura, mas que se alimenta de uma tradição literária, reconhecida e marcadamente classista. Refiro-me a uma corrente literária que vem de Carolina Maria de Jesus e Solano Trindade nos anos 1950 e 1960; passa por João Antonio e Plínio Marcos, também dos anos 1960; e se estende pela década seguinte, chegando aos anos 1990 com Paulo Lins9.
A importância estética da literatura
De toda as expressões presentes na cultura periféria, é nas letras que um padrão estético está mais desenvolvido. Isso pode ser verificado pela vasta produção literária existente10. De tão significativa, a literatura feita na periferia, mais do que qualquer outra linguagem, apresenta ramificações. São designadas como: periférica, marginal, dissidente, literarua, literatura hip hop, poesia das ruas. O que explica tais nomenclaturas, acredito, são concepções e visões estéticas sobre a arte da palavra escrita. Uma estética que tem as ruas como inspiração.
Como vimos, essa produção literária, com todo a sua originalidade, filia-se a uma linhagem de autores que marcaram a recente literatura urbana brasileira, especialmente paulistana11. A inserção da literatura periférica nessa tradição dá-se pela obra do escritor Ferréz que com seus dois primeiros livros, Capão Pecado (2000) e Manual Prático do Ódio (2003) já alcança reconhecimento como romancista. O êxito literário de Ferréz, somado a suas iniciativas de promoção de novos autores por meio de várias coletâneas e um selo editorial, conferem-lhe uma condição de maior influência entre escritores que surgiram depois, na periferia de São Paulo. Formou-se assim uma corrente literária nova, porém tributária da tradição iniciada por Carolina de Jesus e Solano Trindade. Contribui assim, a um só tempo, para sua própria afirmação e para a valorização dessa linhagem de escritores no panorama da literatura brasileira.
Por uma estética da periferia
É necessário que os artistas da periferia, disputem e se apropriem do conceito de estética para afirmarem a qualidade artística de seus trabalhos. Caso contrário, ficarão restritos à afirmação pela condição social, um argumento que tem um poderoso sentido político, porém é limitado em termos artísticos. Chega um momento que se esgota, quando deixa de ser novidade. Este esgotamento está próximo.
Só o desenvolvimento estético permite à produção artística extrapolar o contexto social da periferia, atingindo um universo mais amplo. Isso aconteceu com Ferréz na literatura e, mais recentemente, com o poeta Sergio Vaz. No momento, são os únicos autores nessa a condição. Mas na música, Racionais, Rappin Hood, Emicida, Criolo e o Quinteto em Branco e Preto já demonstraram que é possível transpor essa barreira.
De qualquer forma, já é possível falar de uma estética própria da periferia expressa na produção artística em todas as linguagens: do teatro às artes visuais, passando pela música dança, cinema e literatura. Uma estética que evidencia a origem de classe de seus autores e um sentido libertário presente nas cores, tons, letras, imagens, melodias, dramaturgias e todo o universo de criação artística existente. Mas para alcançar o reconhecimento artístico, é necessário que esta arte seja submetida à crítica.
Não estão em discussão os propósitos políticos do movimento, tão bem expostos nos manifestos da Semana de Arte Moderna da Periferia12. A questão é analisar que arte está sendo produzida a partir desses propósitos. O bordão de Alessandro Buzo, que diz: “Pensavam que não sabíamos ler e agora estamos escrevendo livros”, já não dá conta da cena atual. É hora de discutir a qualidade literária desses escritos.
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1Ver documentário em vídeo Nos tempos da São Bento, de Guilherme Botelho, São Paulo, VAI, 2010.
2O poeta Sergio Vaz publicou, entre 1986 e 1999, três livros: Subindo a ladeira mora a noite;A margem do vento e Pensamentos vadios, todos independentes, ver: Vaz, Sergio. Cooperifa: Antropofagia periférica, Editora Aeroplano, Rio de Janeiro, 2008. O próprio Ferréz, publicou em 1997 seu primeiro livro, uma obra de poesia chamada Fortaleza da Desilusão.
3 Sobre a trajetória do escritor Ferréz, ver Nascimento, Erica Peçanha do, Vozes Marginais na Literatura, Editora Aeroplano, Rio de Janeiro, 2009, dissertação de mestrado em antropologia que faz um dos mais importantes estudos sobre a produção literária na periferia de São Paulo.
4Além de Capão Pecado, foram publicados pela Labortexto, entre 2000 e 2002, Diário de um detento: o livro, de Jocenir; Sobrevivente André Du Rap (do Massacre do Carandiru) de Andre Du Rap e Quatrocentos contra um: uma história do comando vermelho, de Willam da Silva Lima, entre outros títulos. A editora, porém, interrompeu suas atividades depois de uma rescisão de contrato litigiosa com Ferréz que veio reeditar seu Capão Pecado em 2005 pela Editora Objetiva, após o lançamento, pela mesma editora, do seu segundo e também bem sucedido romance, Manual Prático do Ódio.
5Selo editorial criado em parceria com a ONG Ação Educativa e o Centro Cultural da Espanha. Publicou três livros entre novembro de 2009 e abril de 2011: Cronista de Um tempo Ruim, de Ferréz; Amazônia em Chama, deCatia Cernov e Sob o Azul do Ceu, de Marcos Teles.
6Nascimento, Erica Peçanha do, Idem, ibidem
7Buarque de Hollanda, Heloisa, Escolhas, uma autobiografia intelectual, Lingua Geral/Carpe Diem, Rio de Janeiro, 2009.
8Cevasco, Maria Elisa. Dez Lições sobre Estudos Culturais, Boitempo Editorial, São Paulo, 2003
9 Esses autores são os mais citados pelos escritores das periferias seja nos saraus, seja nas obras publicadas.
10, Erica Peçanha, em sua tese de doutorado: É Tudo Nosso – produção Cultural na Periferia, defendida em março de 2012, levantou 72 títulos. Consegui reunir, em minha coleção particular, tenho mais de 80.
11Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977), Solano Trindade (1908 – 1974), João Antonio (1937 – 1996), Plínio Marcos (1935 – 1999) e o contemporâneo Paulo Lins (1958).
12Refiro-me especialmente ao Manifesto da Antropofagia periférica, de Sergio Vaz.
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Antonio Eleilson Leite é historiador, programador cultural e coordenador do Programa de Cultura da ONG Ação Educativa
LEITE, Antônio Eleilson. Literaturas da periferia: o desafio da estética. Outras Palavras. Disponível em: http://www.outraspalavras.net/2012/04/16/literaturas-da-periferia-o-desafio-da-estetica/. Acesso em: 13/05/2012.
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