"Papai eu quero. mamãe eu grito: me dê dinheiro pra comprar o pirulito". Assim passava pregoando o pretinho João do vale, transbordando criatividade na presença, tudo era invenção, motivo de poesia, de encantamento, os pés untados na terra, a voz vibrando no ar, a mercadoria, coisa secundária, ponte de alcance até o próximo barato, fluxo mágico das coisas brutas deste mundo
João do Vale foi o quinto filho de oito irmãos, do qual apenas três sobreviveram, poeta legítimo dos emaranhados e carnais poemas maranhenses. Vendia bolo, laranja, balas (ou bombons, como se diz no Maranhão) pra contribuir no orçamento parco da família. De Pedreiras a família mudou-se para São Luis, e o "pé de chote" (apelido de João) aos catorze do primeiro tempo, imaginava aventuras coloridas de marés e neon no sul-maravilha.
A meta era o Rio de Janeiro. Pediu licença aos mais velhos: licença não concedida. Pernas pra que te quero. João vai cuidar da vida. Estrada nos pés do poetinha: Alcançou Teresina por via ferroviária, Ogum brandindo, abrindo os caminhos da impossibilidade e do axé. Trampo duro carregando e descarregando cargas e descargas de caminhão pelos caminhos tortuosos do Brasil, décimo sétimo ano de vida. Roteiro: Teresina /Fortaleza, outro dia, de repente, foi Salvador. Prédios colados nos olhos arregalados. Primeira cidade grande na vista de João, do menino que frequentou a escola até o terceiro ano do primário, só porque foi obrigado a dar a sua vaga a um outro menino "predestinado", de família promissora, das promissoras posses daquela cidade. De Salvador foi pra terra do ouro, Minas Gerais, e trabalhou no garimpo em Teófilo Otoni, mas o buraco, o tesouro mesmo era, pra ele, mais embaixo...
De carona apeia no Rio de Janeiro. Famosa "Terra Maravilhosa" onde pôs a mão na massa, trabalhando de servente de pedreiro na mesma construção onde dormia. À noite, percorria a cidade boêmia, firmando amizades, tramando contato com outros artistas, chafurdando-se em rádios cantando suas geografias enfeitiçadas de calor humano. Encontrou Zé Gonzaga (irmão de Luiz Gonzaga) que não lhe deu muito ouvido. E foi cantando, cantando e, como Orfeu, envolveu o sanfoneiro em maravilhas. Gravaram o baião Madalena.
Depois conheceu Luiz Vieira, que lhe encaminhou para Marlene, que gravou Estrela Miuda, de Luiz Vieira e João do Vale. Estava aberta a porta: Dolores Duran gravou música sua, Nas asas do vento; Luiz Gonzaga, Maria Inês, Luiz Vieira, também gravaram. João do Vale vai de vento em popa. Trava amizade com Zé Kéti e passa, então, a frequentar o Zicartola, restaurante de Cartola e Dona Zica, estreando como cantor. As gravações lhe renderam 200 mil réis, enquanto que, trabalhando como pedreiro, ganhava a mísera quantia de 5 mil réis. Suas músicas já tocavam no rádio, quando certa feita, numa obra, batalhando duro, de pedreiro, em alguma rádio tocaram música sua. Ele cutucou o amigo e disse animado: "Essa música que 'tá' tocando aí é minha". Seu colega, desacreditando, falou que aquele sol forte 'tava' tirando o juízo de João. E continuou trabalhando... João largou as ferramentas, foi embora e nunca mais voltou.
João do Vale canta toda sexta-feira no Zicartola, à convite de Sérgio Cabral. A ideia do espetáculo Opinião começa a ganhar corpo. Convidado por Oduvaldo Viana Filho, João fica encarregado de forjar a parte nordestina do espetáculo, Enquanto Zé Kéti segurava o samba. O Opinião estreou em 4 de Dezembro de 1964.
Em 1965, lança seu primeiro LP, Poeta do Povo, participa do espetáculo A Voz Do Povo, com Nelson Cavaquinho e Moreira da Silva. Compõe trilha sonora do filme Meu nome é Lampião, dirigido por Mizael Silveira. É convidado como palestrante nos Estados Unidos para falar sobre a utilização de vocábulos sertanejos em suas composições, num curso para professores de língua portuguesa. Em 1970, Tim Maia grava com estrondoso sucesso Coronel Antônio Bento. Em 1974, é a vez de Gilberto Gil com O canto da Ema, em seu disco Expresso 2222.
Certa vez uma jornalista suíça veio da Europa para estudar o gênio João do Vale. Durante os encontros ela foi se enamorando pelo jeito sedutor de João e acabaram se atracando. Quando outros perguntaram o que estava acontecendo, ele respondeu: "Ela veio me estudar, agora eu estou estudando ela".
Por dez anos João percorre o Brasil com o espetáculo Forró Forrado, que começou em 1979 no espaço cultural homônimo e terminou em 1980, quando acontece o Projeto Calunga, realizando diversas apresentações em Angola, de chão beijado e abençoado por João do Vale. Chico Buarque produz o disco João do Vale Convida, em 1981, convidando Tom Jobim, Gonzaguinha, Nara Leão, Zé Ramalho, entre outros.
No mesmo ano faz uma turnê em Cuba. João do Vale adoece em 1987, sofre um AVC e recebe alta em 1989. Sua aposentadoria vem em outubro de 1992. O poeta retorna à Pedreira, sua terra natal, sendo recebido com um tributo no teatro da Praia Grande, em São Luis. Ao completar 60 anos, recebe outra homenagem no teatro que carrega o seu nome. Morre em 1996.
Ele deixa uma obra extensa, com mais de trezentas canções gravadas. João do Vale é signo de vitória e força, de alguém que conseguiu modelar o destino com as próprias mãos. Para saber mais sobre João do Vale, assista ao filme de Werinton Kermes, Muita Gente Desconhece. Leia também a sua biografia, Pisa na Fulô Mais Não Maltrata o Carcará, de Márcio Paschoal
MINHA HISTÓRIA Minha história pra o senhor, seu moço, preste atenção Eu vendia pirulito, arroz doce, mungunzá Enquanto eu ia vender doce, meus colegas iam estudar A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar E quando era de noitinha, a meninada ia brincar Vixe, como eu tinha inveja, de ver o Zezinho contar: O professor raiou comigo, porque eu não quis estudar O professor raiou comigo, porque eu não quis estudar Hoje todo são "doutô", eu continuo joão ninguém Mas quem nasce pra pataca, nunca pode ser vintém Ver meus amigos "doutô", basta pra me sentir bem Ver meus amigos "doutô", basta pra me sentir bem Mas todos eles quando ouvem, um baiãozinho que eu fiz, Ficam tudo satisfeito, batem palmas e pedem bis E dizem: João foi meu colega, como eu me sinto feliz E dizem: João foi meu colega, como eu me sinto feliz Mas o negócio não é bem eu, é Mané, Pedro e Romão, Que também foram meus colegas, e continuam no sertão Não puderam estudar, e nem sabem fazer baião |
VALQUIER, Leandro. João do Vale. RAÇA BRASIL. Disponível em: http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/156/artigo224070-1.asp. Acesso em: 09/11/2011.
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