domingo, 6 de novembro de 2011

Negros no sul? Tem, sim senhor

Tema de carnaval do Ilê Aiyê homenageia os afrodescendentes do sul do Brasil e discute a invisibilidade dos negros na região


Jovens negros dançam em Curitiba; a pequena Aninha; bolsistas da Univursidade 
Federal do Paraná (UFPR). A presença negra no sul do Brasil é marcante
Cai a tarde em Salvador e, no bairro da Liberdade, numa conversa descontraída, nascia o tema do carnaval 2012 do Ilê Aiyê, o bloco afro mais tradicional da Bahia: Negros do sul. Lá também tem? Antonio Carlos dos Santos "Vovô", presidente do Ilê, diz que a ideia inicial era falar de um tema ligado diretamente à África. "Foi numa conversa com um amigo, Fabio Goes, que surgiu uma proposta sobre negro de Londrina, e foi aí que pensei que poderíamos estender e mostrar os negros da região Sul", conta.

O tema traz a interrogação ("Lá também tem?") de propósito. "A ideia é quebrar a falsa discussão que no sul não há negros, existem até quilombos, e as pessoas desconhecem. A mídia não fala e as informações que chegam é que negro no sul é visita e dá para contar nos dedos. Mas há negros! Eles têm história e deram sua contribuição na construção dos Estados. A cultura negra está presente e é isso que vamos mostrar." E essa história não será apenas contada no próximo carnaval. "Vamos deixar esse registro por meio das músicas que iremos criar, nos versos que serão compostos, nos cadernos de educação que irão circular por todo o Brasil. 

E o sul vai mostrar a sua cara preta", diz Vovô.

A expectativa é que a ação do Ilê produza também outro efeito, além do reconhecimento de que há negros no sul, como o próprio reconhecimento de pessoas negras que desconhecem a importância de sua história e cultura. Vovô espera que esta ação tenha um efeito também sobre os jovens, que resgatem o orgulho de ser negro e assumam sua negritude.

Após uma agenda entre a ministra Luiza Bairros, da SEPPIR, e o segmento do carnaval, a Associação das Entidades Carnavalescas de Porto Alegre e Estado do RS convidou o Ilê para ir ao sul do país. Uma comissão foi formada para acompanhar o trabalho. A visita durou dez dias e passou pelas cidades de Pelotas, Rio Grande, Santana do Livramento, Santa Maria e Porto Alegre (no Rio Grande do Sul); Itajaí e Florianópolis (em Santa Catarina); e Curitiba e Londrina (no Paraná). Segundo o produtor cultural Otávio Pereira, "o objetivo foi articular apoio institucional e fomento de projetos com as autoridades locais e conversar com representantes das organizações sociais negras."

O design Raimundo Santos, conhecido como Mundão, fotografou inúmeras referências da presença negra nos Estados. No Paraná, por exemplo, chamou a atenção a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito, no mesmo local funcionava a igreja dos escravos que foi, inclusive, construída por eles por volta de 1737. As várias imagens coletadas farão parte da estamparia do bloco e estarão nos carros, nas roupas, nos camarotes e em todo material alusivo ao evento. "Juntei um estoque interessante de informações focado na simbologia afro nos Estados. Essa foi a primeira pesquisa de campo, agora vamos aprofundar o trabalho de produção visual para produzir todo material gráfico para o carnaval", explica.

"TEMOS CIDADES ONDE O POVO NEGRO MARCA PRESENÇA, CHEGANDO A 80% DA POPULAÇÃO, COMO NO CASO DE RIO GRANDE E PELOTAS"

Para o jornalista brasiliense Michel Aleixo e Silva, o trabalho do Ilê Aiye, com ênfase no sul, produzirá um efeito interessante de divulgação, mostrando ao resto do país a importância da população negra. "Vejo que os maiores destaques da mídia tradicional são sempre esportistas, como Daiane dos Santos e jogadores de futebol, como Ronaldinho Gaúcho. Eles são os representantes mais expressivos de negros da região Sul. Não se fala tanto na história e na cultura afro desses Estados. É como se não existisse", destaca o jornalista.

"A ESCRAVIDÃO AQUI FOI MAIS PERVERSA"

Vovô, presidente do Ilê Ayê: 
"O sul vai mostrar a sua cara preta"
O babalorixá Diba de Iyemonjá, do Asé Iyemonja Omi Olodo, da Vila São José, em Porto Alegre, confirma que é comum uma reação de surpresa quando apresenta ações da comunidade afro do Rio Grande do Sul. "Não nos conformamos com essa invisibilidade. Isso é resultado do colonizador escravagista que fez um grande esforço para separar os negros, porém, hoje, estamos conseguindo sintonia, nos enxergando e tendo reconhecimento de nossas tradições." Para o religioso, a ação de um dos blocos mais tradicionais da Bahia vinculado ao terreiro IleAxeJitolu, de Mãe Hilda, é um motivo forte de comemoração "Pelo menos sabemos que o olhar do povo negro do Brasil estará voltado para os negros daqui", diz, enfatizando que os "irmãos" do sul são muito fortes "Nós somos o sumo da resistência, porque, historicamente, a escravidão aqui foi a mais perversa por conta das charqueadas, e o racismo muito maior, pois para cá vieram alemães, italianos e açorianos que receberam do governo glebas de terras para, à custa da exploração do nosso povo, investirem na agricultura e pecuária", afirma.

Lena afirma que a ação do Ilê irá quebrar o
imaginário construído de um suposto sul branco
A religião de matriz africana foi muito perseguida pelos governos e pela polícia. Segundo o babalorixá, as autoridades mandavam invadir e fechar os terreiros, além de prender pais e mães de santo e seus adeptos. 

Mesmo assim, o Rio Grande do Sul é o Estado onde o povo mais se assume do Asé e que abriga o maior número de terreiros no Brasil. "Temos cidades, como Rio Grande, Pelotas, Santa Maria e Bagé, onde o povo negro marca presença, chegando a 80% da população, como no caso de Rio Grande e Pelotas. Nossa capital, Porto Alegre, segundo o censo do IBGE, tem 17% de negros. Um percentual que sempre questionamos, pois, ao visitar as vilas e morros das periferias, quase não se vê a presença de brancos", destaca o religioso.
 
CONSTRUINDO A NAÇÃO

Design Raimundo Santos, o Mundão, fotografou inúmeras referências
da presença negra em Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná
Os negros do sul estiveram diretamente ligados na criação do Dia da Consciência Negra (20 de novembro). 

O coordenador-geral de educação para relações étnico- raciais do Ministério da Educação, Antonio Mário Ferreira lembra que a data foi escolhida em contraponto ao 13 de maio. A discussão partiu do coordenador do grupo Palmares de Porto Alegre, o poeta Oliveira Silveira, com o escritor e historiador Décio Freitas. 

"Havia um material com documentos que indicava que a data provável da morte de Zumbi teria sido em 20 de novembro de 1695.

Os bandeirantes levaram o corpo de Zumbi esquartejado para a atual Recife. Foi então que o Movimento Negro Unificado (MNU) do Rio Grande do Sul apresentou ao MNU Nacional a proposta, que foi aceita." 

Outra contribuição relevante é a literatura, com o próprio escritor Oliveira Silveira, que mostrou o negro gaúcho do interior, trabalhador nas charqueadas que cuidava de gado. "É a descrição do negro transformador, que luta e trabalha gerando crescimento na economia do Estado. Não é a demonstração derrotista de um negro que sofre e chora", analisa Ferreira.

Na música, a arte de Bedel e Luiz Wagner são destaques. Esses artistas que contribuíram na criação do samba rock, estilo que infl uenciou músicos como Jorge Ben Jor. Ferreira cita, ainda, Lupicínio Rodrigues, um dos maiores compositores da música popular brasileira, interpretado por vários artistas, entre eles, Jamelão.

O PARANÁ

É o Estado com maior número de negros: 28% da população. A diretora do Núcleo de Pesquisa do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos (IDDEHA) e diretora do Instituto de Pesquisa do Afrodescendência (IPAD Brasil), Marcilene Garcia de Souza, mais conhecida como Lena - a primeira mulher negra formada em Ciências Sociais na cidade de Curitiba a se tornar doutora em Sociologia - afirma que a ação do Ilê irá quebrar o imaginário construído de um suposto sul branco. "A população negra do sul também contribuiu na formação econômica e social do país, sobretudo, quando esteve numa situação de escravização. A escolha deste tema certamente irá mostrar a importância histórica não somente na economia, mas também na construção cultural", esclarece Lena, que aponta ainda a divulgação de personalidades negras sem visibilidade. "As universidades, a partir disso, poderão aprofundar as pesquisas e os movimentos sociais negros devem fazer o devido registro dos personagens que compõem este cenário e atuam diretamente nessa construção."

No Paraná, existe uma presença significativa de quilombos. Com base em um estudo coordenado pelo Grupo Clovis Moura, elaborado pela historiadora e especialista em Educação Patrimonial Clemilda Santiago Neto, são mais de 100 comunidades, sendo 36 já certificadas pela Fundação Palmares. Mesmo com a presença maciça no Estado, o processo de invisibilidade é forte. Para o diretor da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e doutor em psicologia, Paulo Vinicius Baptista da Silva, do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro (NEAB-UFPR), a invisibilidade desta população ocorre pela orientação das ideias racistas hegemônicas no século 19 e da "ideologia do branqueamento", que motivou a imigração no final do século 19 e início do 20. "Essas teorias pregavam que os negros(as) africanos(as) são sinônimo de incivilidade; europeus(eias) brancos(as) são sinônimo de civilização e desenvolvimento. As histórias dos 2 Estados foram reescritas a partir dessas ideias, ocultando a presença negra. Relaciona-se com estruturação de relações de dominação estabelecidas ao longo dos anos, com as dificuldades de mobilidade social da população negra até os dias atuais", destaca.


GRANDES HOMENS E MULHERES
Antonio Mário Ferreira, do MEC

Santa Catarina é o Estado com menor índice da população negra. Dos 6.250.000.00 habitantes, distribuídos nos 293 municípios, a população negra (pretos e pardos), corresponde a 13,9%, somando 868.750 pessoas. 

O sociólogo doutorando em Arqueologia/ IPT (Portugal), João Carlos Nogueira - que integra o Núcleo de Estudos Africanos, afirma que a contribuição dos negros no Estado não é mais mito. "As pesquisas, já no século 20 e atualmente, confirmam a participação ativa como mão de obra no campo, como meeiros ou pequenos proprietários de terra. 

Sua participação é indiscutível na formação da indústria pesqueira no litoral, na construção das estradas de ferro no sul e norte do Estado, na indústria metal mecânica, na tecelagem e em serviços. É importante destacar o crescimento da presença de alunos negros nas universidades públicas, via sistema de cotas, e nas privadas, via Prouni. Com isso, espera-se uma maior participação nos setores de serviços (inovação tecnológica, profissionais liberais, autônomos e empreendedores)." Nogueira destaca que também há grandes nomes na literatura e nas artes em geral. "O poeta Crus e Sousa, referência universal no simbolismo; e Luiz Delfino, poeta influenciado pelo romantismo e parnasianismo. No início do século 20, tivemos outros poetas e escritores, como João Rosa Junior, Trajano Margarida e Ildefonso da Silva. As mulheres também se destacaram, tanto na arte como na política: Valda Costa, nascida em Florianópolis, em 1951, produziu em torno de 800 obras entre telas e esculturas. Na política, Antonieta de Barros, educadora, poetisa e jornalista, que nasceu em 1901 e se elegeu deputada com 35.484 votos, em 1935, fazendo parte do processo constituinte do mesmo ano."
Para o sociólogo, a proposta do Ile é fundamental não só por quebrar mitos e desmistificar a visão de região europeia, mas, sobretudo, por ajudar o Brasil e a região a se reencontrarem com a sua realidade multicultural, plurietnica e multirracial. "Mesmo por que a região Sul é formada por 20,09% de negros que, em números absolutos, corresponde a quase um terço da população nos três Estados", ressalta.

Para o presidente do Instituto Énrea, o historiador Fabio Garcia, o destaque do Ilê irá contribuir para as reinvindicações das demandas da população negra na região Sul. "Esta ação irá desmitificar a ideia que há uma Europa no sul do Brasil. Isso poderá ter consequências diretas na aplicação de políticas públicas que visam a diminuição das discrepâncias sociais e econômicas entre brancos e negros."



ANTONELLI, Eli. Negros no sul? Tem, sim senhor. RAÇA BRASIL. Disponível em: http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/158/artigo228092-3.asp. Acesso em: 06/11/2011.

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