A escritora CONCEIÇÃO EVARISTO critica os estereótipos artísticos que pairam sobre a mulher negra e defende a educação como a melhor ferramenta de acesso à igualdade
Como qualquer escritora, Conceição Evaristo é uma mulher que conta histórias - aquelas que vem ouvindo desde criança, que testemunhou ao longo de seus 60 anos de vida, histórias alheias que se enquadram à sua realidade. Mas ela não é qualquer escritora. Ser mulher, negra e escrever sobre essa condição faz torcer três vezes o nariz de editores e leitores brasileiros, culturalmente acostumados a fechar os olhos diante dessa realidade, apagada até dos livros de história.
É uma situação mais complexa do que na África do Sul, por exemplo, onde a escritora Nadine Gordimer ganhou o prêmio Nobel de Literatura escrevendo romances que tratam das relações raciais, em plena vigência do Apartheid, o hoje extinto regime de segregação racial do país. É mais complicado do que nos Estados Unidos, onde o livro A cor púrpura, de Alice Walker, foi best-seller, virou filme de Steven Spielberg e peça encenada em um teatro na Broadway. Num país em que talvez o maior marco no tema seja a obra de Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo, publicado pela primeira vez há quase 46 anos, Conceição Evaristo alcançou um feito especial com o lançamento de seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio (Mazza Edições, 126 páginas, R$ 25). Não que ela não tivesse publicado nada antes. Até agora, sua obra estava presente em antologias, e o reconhecimento pelo trabalho é ainda mais evidente nos seus textos publicados nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Alemanha. Nascida e criada numa favela de Belo Horizonte, estudar era seu maior objetivo. Trabalhando como doméstica na capital mineira, terminou o Normal, hoje magistério, em 1971, depois mudou-se para o Rio, onde estuda até hoje. Sua dissertação de mestrado sobre literatura afro-brasileira foi a primeira sobre o tema no país, conquistando nota 10 com louvor. Às vésperas do lançamento de seu segundo romance, Becos da memória, e preparando-se para a defesa da sua tese de doutorado, Conceição concedeu a seguinte entrevista à Revista Raça.
Como uma mulher negra se conseguiu se tornar doutoranda em literatura?
É uma longa história, que é em primeiro lugar uma história de conflito, porque quando eu cheguei no Rio de Janeiro em 1973 e fui prestar o meu vestibular para letras, num primeiro momento eu tive um conflito muito grande sobre até que ponto o estudo de literatura era uma coisa que realmente teria a ver com a minha história, que era uma história de uma pessoa que vem de uma família superpobre de Belo Horizonte, ex-militante de movimento operário... Eu me perguntava como poderia usar a literatura em função de todas as questões em que eu acreditava.
Quando eu terminei o normal em BH, em 1971, não havia concurso para magistério, e eu queria dar aulas. Para entrar para o magistério em BH era na base de "quem indica", porque na verdade eram determinadas normalistas de determinadas famílias que conseguiam. Como eu vinha de uma família muito pobre e a relação que a gente tinha com as famílias na época era uma relação de patrão-empregado - inclusive quando eu terminei o meu normal eu trabalhava em casa de família -, as pessoas que poderiam me ajudar não estavam muito interessadas em arranjar para eu dar aula porque elas viam o perfil de uma futura doméstica.
Tinha até uma professora da época do primário que se propôs a ajudar, mas eu não quis, porque eu raciocinei o seguinte: eu ficaria sempre numa situação subalterna. No Rio, fiz o concurso para magistério [dar aulas] e passei. Também fiz o concurso para magistério em Niterói, passei, e nesse mesmo período [1976] comecei a fazer a faculdade de letras na Universidade Federal do Rio. Nessa época eu precisava trabalhar para ajudar minha família que tinha ficado em BH numa situação de penúria muito grande, porque quando eu saí de lá a gente estava saindo de um plano de desfavelamento, ou seja, fomos mandados embora da favela e fomos morar num lugar ainda mais longe.
O meu curso de graduação foi interrompido, no último semestre, porque eu me casei e tive uma filha com um problema congênito, então no final da minha graduação eu tive que deixar tudo. Quando ela já estava com quase nove anos que eu consegui voltar e terminar a faculdade. Mais tarde, quando o meu marido faleceu de repente, eu perdi o chão. Então voltar a estudar foi uma maneira de provar para mim mesma que eu continuava viva. Então eu fiz um curso de pós-graduação na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, depois fiz o meu mestrado na PUC-RJ [Pontifícia Universidade Católica], sobre literatura afrobrasileira.
A questão financeira também atrapalha um autor negro?
Claro que atrapalha. Se você está com um livro na rua, um produto, você tem que fazer uma divulgação, e isso custa. Com o trabalho de uma assessoria de imprensa eu consegui o retorno em um capital simbólico, de me tornar uma autora mais conhecida, mas o retorno financeiro ainda não veio com a literatura.
O que você acha da lei 10.639?
Eu acho interessante, mas tem uma coisa que tem que ser ressaltada: quando essas discussões chegam a se transformar em lei, a gente não pode perder de vista que isso foi todo um processo de questionamento, que nasce dentro da demanda do próprio movimento negro, dos professores negros, dentro de um movimento ou não, mas que estão atentos à questão da representação do negro no livro didático. Então essa lei e fruto de um trabalho nosso. Não é uma lei que caiu do céu. Mas ela também exige, o mais urgente possível, uma forma de treinamento para esses professores. Porque senão daqui a pouco vão estar assumindo essas funções muita gente que ouve o galo cantar e sai correndo atrás.
Na sua opinião, qual a importância de se ter uma literatura afrobrasileira?
Para mim é importante porque se você pensa que a literatura, de certo modo, revela a face de um povo, de nós brasileiros, a função da literatura afrobrasileira é revelar a nossa face tal qual nós acreditamos que ela é e não maneira como o branco sempre nos revelou, como uma literatura criada a partir do espaço hegemônico sempre nos revelou. Acho que a literatura afrobrasileira, como contravoz de um discurso brasileiro, entra nesse espaço da literatura dizendo "Não é bem isso". A mulher negra não é a Rita Baiana, não é a Gabriela Cravo e Canela, ela pensa também.
Que livros e autores com essa temática te inspiraram e que são de leitura imprescindível para pessoas negras?
Eu gosto muito do Lima Barreto, porque ele foi um escritor que realmente colocou o dedo na ferida. Acho interessante Maria Firmina dos Reis, que escreveu Úrsula e que está escrevendo um romance de uma história da casa grande, mas lança um outro olhar sobre o negro, que naquele momento ainda era negro escravizado.
Eu gosto muito dos escritores contemporâneos, como Geni Guimarães, aqui no Rio de Janeiro tem uma poetisa que eu gosto muito que é a Ana Cruz. Eu acho que tem determinados autores negros que se nós negros voltássemos o olhar mais aprofundado para essa literatura, a gente veria o esforço desses autores ao se colocarem como negros, igual o Luis Gama, Cruz e Souza, e entenderia também como deve ter sido difícil para um Machado de Assis ser um negro fundador da Academia Brasileira de Letras.
O que esse nome teve que engolir pelo caminho para ele ser reconhecido como o maior escritor brasileiro.
Quer dizer, como esse homem deve ter sido violentado na sua identidade e hoje ele é visto como branco pela maioria. Alguns escritores negros fazem uma crítica muito severa a Machado de Assis. Inclusive tem um pesquisador de Belo Horizonte que está fazendo um estudo sobre ele, mais precisamente em busca desse Machado de Assis negro e que toda crítica literária esqueceu.
Ele diz que o Machado de Assis vai aparecer como negro nas crônicas e artigos que ele manda para jornais sob pseudônimos, porque se apresentar como negro poderia ser um tipo de entrave para ele, como ainda hoje alguns negros dentro da literatura precisa optar pelo esquecimento e pelo abafamento da sua identidade negra. Acho que eles ainda não suportam, porque não é fácil ser negro. É muito mais cômodo você sair pela tangente, e quando você sai pela tangente ele também está vivendo um processo muito doloroso com ele mesmo, ainda que ele pense que não.
A gente sabe que poucos textos de literatura brasileira chegam às universidades, aos cursos de letras, por exemplo?
Por que você acha que isso acontece e como lidar com essa rejeição e continuar escrevendo? Todas essas questões têm de ser uma verdade sua, porque quando elas são a sua verdade, você tem força para ir lidando com isso. A academia tem um desconhecimento muito grande dessa produção intelectual e dessa produção literária negra. Acontece que no caso de vários desses professores que hoje se voltam para a literatura afrobrasileira, o primeiro contato deles foi ou com a literatura afroamericana ou com a literatura africana.
E quando um professor entra em contato com a literatura afroamericana, ele começa a imaginar que no Brasil, eles começam a imaginar que no Brasil pode haver coisas interessantes. A minha constatação é que na verdade é quase como um trabalho de formiga. Esse material tem chegado às salas de aula, por conta de professores que já estão voltados para esses textos negros. São projetos de cursos desses professores feitos em cima dessas obras. Por outro lado, eu acredito que a entrada de estudantes negros nas universidades - e alguns desses estudantes têm uma inserção no movimento social - faz com que eles também passem a cobrar.
O fato é que ainda há uma carência de professores com o compromisso com essa questão, porque são eles que correm atrás dos textos. Ou seja, ainda é uma atitude dos professores, não é uma postura da instituição.
Eu gosto sempre de falar que a universidade vai cumprir o seu papel de universal o dia em que ela realmente abarcar as formas de conhecimento vindas de todas as categorias sociais e raciais.
Fora do meio acadêmica causa estranhamento entre as pessoas o fato de você ser uma mulher negra, de origem pobre que é doutoranda?
Além de causar esse estranhamento, eu acho que em determinados momentos causa uma certa dúvida, tanto é que eu falo pouco sobre isso. Senão as pessoas ficam se perguntando: "Será que é mesmo?". E em ambiente de trabalho, não na escola em que eu trabalho, alguns professores que estão cumprindo uma função burocrática e têm mais poder por estar numa esfera administrativa, quando ficam sabendo que eu sou doutoranda ou quando eu peço uma licença para viajar para fora do Brasil por causa de alguma palestra, causa despeito.
Então se puderem me pegar por algum lado, vão pegar. Se puderem atrasar um processo, se puderem dizer para mim "Volta amanhã, que eu te dou a resposta", podendo me dar a resposta naquele momento, vão fazer isso. Mas é um comportamento da sociedade brasileira, porque aqui o branco tem uma facilidade de lidar com o negro quando o negro não está com ele num posto de disputa. Quer dizer, eu posso estar muito bem no meio de brancos, mas quando eles sabem que eu sou escritora, que eu vou concorrer com eles em alguma coisa, aí a relação muda de figura.
De que maneira a identidade de Ponciá Vicêncio pode ser um reflexo da nossa sociedade?
Eu acho que a própria condição de pobreza de Ponciá Vicêncio é uma condição de pobreza da maioria das mulheres negras. Quando você pensa no índice de pobreza no Brasil, sem dúvida, pode colocar a maioria das mulheres negras como as mais pobres, sendo que elas são as culpadas, não as vítimas, as mulheres que estão trabalhando nas casas de família, nos subempregos. Ponciá Vicêncio morou num favela, você vê a quantidade de mulheres que moram nas favelas e que são esteio da família. Eu gosto muito de Ponciá no sentido de que Ponciá mostra essa impotência em termos de conseqüência de vida para a saúde dela, porque ela surta.
A personagem principal do livro tem "ausências" de memória, que ficam claras dentro do contexto, mas de um modo bem subliminar. Por que você achou importante incluir isso na obra?
Na verdade, a Ponciá retrata muito a questão da saúde mental dos negros. Há um certo tempo, o fantástico mostrou uma série de reportagens em casas de pessoas com problemas de saúde mental, e a gente via uma grande maioria negra. Então eu acho que essa condição desumana em que a gente vive tem muito a ver com as doenças mentais que nós desenvolvemos.
Ou seja, isso tem um fundo social.
Com certeza eu acho que essa doença mental de Ponciá tem um fundo social. Agora tem uma outra coisa que é uma leitura minha como escritora é que você vê que o surto dela tem a ver com a questão da ancestralidade, da herança genética. Penso que se você tem dinheiro e vai fazer uma terapia, isso resolve um pouco, que é o que a classe média consegue fazer. Mas como a nossa terapia é a religião, vindo de uma família extremamente católica eu acho que as religiões cristãs não respondem à questão da nossa ancestralidade. Então, lidar com algumas coisas fica muito difícil, porque a gente desconhece. Essa é outra coisa bastante interessante no livro, representada pela personagem da Nêngua Kainda, que é a mãe de santo, médica, conselheira. Inclusive uma das coisas que Ponciá Vivêncio retrata é que quando a gente não sabe e não consegue lidar com aquilo que a gente tem de herança, e herança em termos espiritual principalmente, nós nos tornamos um sujeito desconcertado, mais vulnerável.
Mas esse lidar com a herança tem a ver com a questão da ignorância ou com a influência das religiões cristãs?
Em primeiro lugar vem a questão da ignorância, porque a gente perdeu de vista tudo o que trouxe. Algumas pessoas conseguem até recuperar isso, porque se voltam para as religiões afrobrasileiras. Eu não estou dizendo que o cristianismo não resolva. Até pode resolver, mas eu acho que há algumas formas de solucionar que a gente deixou de lado. E talvez se nós dialogássemos mais com as nossas religiões, com a nossa cultura, talvez a gente conseguisse ser um pouquinho mais inteiro.
A senhora acredita na literatura como uma das formas de resgatar uma identidade perdida?
Sim, acredito. Inclusive eu já ouvi críticas de estudiosos de literatura afrobrasileira que dizem que os nossos textos ainda estão ligados a uma África mítica. Eu acho que alguns textos ainda trazem muito essa memória do passado. Eu trago essa memória da ancestralidade, falo de África ainda, falo do pai de Ponciá, que voltava para casa cantando canções que ele havia aprendido ainda com o pai, na África. Então, quando o negro tem necessidade de transitar por essa história que ficou tão lá atrás no passado, acho que isso mostra ainda uma certa falta de lugar numa sociedade que ainda nos exclui.
Quando o Romantismo brasileiro, por exemplo, no primeiro momento da literatura em que se começa a buscar um pensamento nacional, ao pensar em um sujeito para a nação brasileira, o índio é mitificado, mas é aproveitado. Quando a luta era contra o português, ele mesmo retorna como mito fundante quando, por exemplo, em Iracema a mulher indígena se liga a Martin, ou quando Ceci, que é uma mulher européia, se liga a Peri, que é um indígena, em O Guarani.
Agora, o negro não entra como mito fundante na nação brasileira, então quando a literatura retoma esse passado africano acaba mostrando o nosso não-lugar, porque a gente ainda está procurando um lugar. Por outro lado, tem muito branco brasileiro que adora dizer que é descendente de português, descendente de italiano. Se eles podem buscar sua origem européia e valoriza-la tanto, porque a gente não pode buscar uma origem africana e valorizar também?
"ESPERA-SE QUE A MULHER NEGRA SEJA CAPAZ DE DESEMPENHAR DETERMINADAS FUNÇÕES, COMO COZINHAR MUITO BEM, DANÇAR, CANTAR, MAS NÃO ESCREVER. ÀS VEZES ME PERGUNTAM: 'VOCÊ CANTA?'. E EU DIGO: 'NÃO CANTO NEM DANÇO"
Quais são os obstáculos para um autor negro publicar um livro?
Conceição - O primeiro obstáculo é ser um autor novo. Alguém já consagrado recebe de início um outro tratamento, mesmo se escrever uma baboseira. Se for um autor com presença na mídia, como uma apresentadora de TV, é ainda mais fácil. Agora, se você não está na mídia e ainda é negro e mulher, a situação se complica mais, porque espera-se que a mulher negra seja capaz de desempenhar determinadas funções, como cozinhar muito bem, dançar, cantar - mas não escrever.
Às vezes, as pessoas olham para mim e perguntam: "Mas você canta?'. E eu digo: 'Não canto nem danço'. Para um negro desconhecido tornar-se escritor, há todas essas dificuldades. Para uma mulher negra, pode multiplicar isso por mil, pois você vai assumir uma função que a sociedade não está acostumada a esperar. A sociedade tem uma expectativa que nunca é intelectual.
Que tipo de dificuldade existe quando um autor negro vai oferecer sua obra em uma editora?
Mandei o romance Ponciá Vicêncio para uma editora e não tive resposta. Depois disso, não tentei mais nenhuma. Após algum tempo, resolvi tentar a Mazza por uma questão ideológica, pelo fato de ser uma editora de uma mulher negra. Mas o problema não termina com a publicação de um livro. Ponciá Vicêncio já esteve em uma livraria grande aqui do Rio, e eu o levei pessoalmente. Só que o livro não foi colocado no sistema de informática da loja e, portanto, era como se ele não estivesse lá. Dois pesquisadores estrangeiros que vieram ao Brasil foram procurar a obra e tiveram que insistir, pois a livraria afirmava que o livro não existia.
Quer dizer, um livro de Conceição Evaristo numa grande livraria é colocado lá no fundo, escondido, em último lugar, enquanto o de um autor conhecido já é posto logo nentrada. Mas esse é um problema mercadológico. Além disso, tem a questão da temática do meu trabalho, que é uma faca de dois gumes. Por um lado, ela não interessa, mas com a lei 10.639 [que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas] esse tema vai atender a uma demanda - só que sempre por uma questão mercadológica, nunca ideológica.
A Senhora acha que a questão da auto-estima influencia o resultado final do conteúdo?
Influencia em todos os aspectos da nossa vida. Aquela história de que o profissional negro não pode falhar, de que a gente é treinado para tirar 10 - pois do contrário não serve - faz com que a gente tenha uma exigência muito grande a nosso respeito. Eu me pergunto várias vezes se esse tempo todo que demorei para publicar meu livro não foi por causa de uma autocensura, do tipo 'será que está bom mesmo?'.
A gente já foi tão machucado na auto-estima, exigimos de nós mesmos ser sempre o melhor, que isso cria uma certa insegurança. Porque muitas vezes você vê pessoas que não têm competência nenhuma, que botam um ovinho de nada e saem gritando - e todo mundo fica aplaudindo. E nós, negros, às vezes temos coisas ótimas que nós mesmos não percebemos.
Quer dizer, então, que as comparações entre a literatura produzida por negros e por brancos trazem medo para o autor?
Acho que isso é algo que ao mesmo tempo pode ser usado a nosso favor e contra. Em certos momentos, o fato de ser quantitativamente menor pode também ser positivo, porque você vira a novidade, mas também passa por aquela situação de 'puxa, negro escreve?', 'mulher negra escreve?'. Só que também é preciso ser hábil para tirar proveito desse jogo.
Escrevemos, sim, e escrevemos diferencialmente. Nesse caso, estar em menor número serve para afirmar e explicar positivamente essa diferença quantitativa. Numa antologia que tem, por exemplo, 14 escritoras brasileiras e só três negras, alguma coisa está errada. Aí é o momento de você, negro, apontar o que está errado, porque é lógico que não há só três escritoras negras neste país.
"NÃO NASCI RODEADA DE LIVROS, NASCI RODEADA DE PALAVRAS"
Em obras como A escrava Isaura, uma visão deturpada da mulher negra, embranquece a heroína e lhe confere características positivas por não ter os traços negros. Quais são as conseqüências disso?
Quando a mulher negra passa por esse processo, continua sendo desvalorizada na sua condição de mulher. Ainda se espera que determinadas funções ou lugares não sejam propícios para as mulheres negras. É muito mais fácil para a sociedade brasileira aceitar uma negra rebolando com a bunda de fora do que reconhecer a competência de uma negra professora, de uma negra médica.
Eu não sei até que ponto essas mulheres eram realmente fogosas, ou se isso era atribuído a elas. O fato é que a sociedade espera que você cumpra determinadas funções e tenha determinadas características que vêm sendo coladas à imagem das mulheres negras há anos e anos.
Para a senhora, qual é a diferença entre ser mulher negra e simplesmente mulher?
É muito diferente. A questão étnica pode ter um peso bem grande, mas vai depender muito da situação em que se está. Na questão do feminismo, por exemplo, enquanto as mulheres brancas precisaram sair às ruas para ficar livres da tutela do pai, do marido ou do irmão, esse não foi o nosso caso. Não precisamos lutar pra ficar livre da dominação e querer trabalhar. A gente sempre precisou trabalhar.
O nosso feminismo vem para a gente se afirmar como pessoa. Eu acho que a nossa primeira luta feminista não foi contra o homem negro, mas contra os nossos patrões e patroas. Enquanto a primeira luta da mulher branca e da mulher de classe média foi contra os homens de sua própria família - e eu não estou dizendo que o homem negro não seja machista -, nós nos posicionamos primeiro contra o sistema representado, principalmente, pelo homem branco e pela mulher branca.
A Senhora acredita que o discurso dos negros está mudando, no sentido de fugir do discurso
produzido nas décadas anteriores, carregado de lamentos, mágoa e impotência?
Há uma mudança, sim, e sempre tenho exposto isso. Há alguns anos, nossa afirmação étnica era uma de lamento, depois passou a uma de orgulho e hoje é de reivindicação.
E como essa reivindicação vem?
Essa reivindicação vem justamente porque nós estamos fazendo questão de estar em todos os espaços, nas universidades, na vida pública, nos meios de comunicação. Por isso acredito que hoje há uma afirmação que reivindica. Mas eu também acho que a gente não deve esquecer o passado, pois ainda precisamos exorcizar essa nossa dor. Creio que não esquecer impulsiona você a cobrar, porque nada que a sociedade está nos oferecendo é de graça. Então vale relembrar o passado.
Estão nos devolvendo tardiamente o pouco do muito que nos tomaram. Essa lembrança deve ser fortalecida para sabermos sempre por que estamos cobrando. Não é um muro de lamentações. Eles nos roubaram e a gente não pode perder essa perspectiva do passado - mas olhando sempre para o futuro.
Entre os escravos e quilombolas não havia registro escrito porque a maioria era analfabeta. Qual é a importância da história oral?
A maior importância é essa fonte de possibilidades que a história oral revela, na medida em que ela me dá um conhecimento que foi negado ou disfarçado. Nossos antepassados vêm de uma cultura oral e o que poderia ter sido escrito não foi. A literatura, quando escreve a nosso respeito, o faz de outro modo. A oralidade é uma forma de dialogar com muita coisa que se desconhece.
Quando paro a fim de escutar a história das pessoas, principalmente daquelas com mais idade, vejo quanta coisa a gente não sabe, que um livro não traz, e que só eles mesmos, com a sua sabedoria, podem nos contar. Uma coisa que também gosto de dizer é que eu não nasci rodeada de livros, nasci rodeada de palavras. Os escritores que conheço, que vêm de uma classe média, dizem 'eu nasci rodeado de livros'. E eu digo: 'Eu não nasci rodeada de livros, nasci rodeada de palavras, num ambiente onde contar histórias era uma coisa natural.
"A PRIMEIRA LUTA FEMINISTA DAS MULHERES NEGRAS NÃO FOI CONTRA O HOMEM NEGRO, MAS CONTRA OS NOSSOS PATRÕES E PATROAS"
A mulher negra está entre os maiores índices de pobreza. Elas não vão deixar de ser negras, mas
como deixar de ser pobres?
Deixar de ser pobre é uma coisa mais complicada, mas penso que você pode conseguir uma vida um pouco mais digna. Quando olho para trás e vejo que não moro mais numa favela, é porque consegui estudar, tenho uma profissão. Mas deixar de ser pobre implica ter uma estrutura sedimentada que ainda não possuímos.
Não temos herança econômica. Poucos negros hoje na sociedade brasileira têm uma casa própria.
Dificilmente você encontra um negro que tenha herdado uma casa na Tijuca [bairro carioca de classe média].
Portanto, deixar de ser pobre é uma luta que requer a acumulação de bens econômicos, propriedades, uma herança. Isso já acontece em termos individuais, mas não com a coletividade, pois você ainda não tem uma maioria em profissões liberais, em cargos privilegiados.
Estamos saindo de um estado de miséria, só que não é uma conquista coletiva. Apenas o estudo abre essa perspectiva, mas também não podemos pensar que a educação faz milagre, porque há muitos negros formados e sem emprego, por uma questão social.
FREDERICO, Carol. Eu não sei cantar. Raça Brasil. Disponível em: http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/96/artigo15620-2.asp. Acesso em: 31/10/2011.
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